Vozes e profecias contracenam nos cenários que marcam circunstâncias da sociedade contemporânea. As vozes são muitas. Não poderia ser diferente, pois a contemporaneidade também se caracteriza pelo direito irrestrito de se expressar – uma necessidade e também um dever. Os diálogos são tecidos com os elos do que se diz. E as vozes são muitas, ante a autonomia, a necessidade e o dever de se expressar. Dessa realidade, surgem desafios para enunciar falas coerentes, sensíveis às muitas vozes que precisam se fazer ouvir. A escuta se torna, pois, uma exigência. Condição indispensável para o diálogo. Há, assim, a dicotomia entre os direitos de poder, de dever dizer, e a exigência de também saber escutar. Sem escuta, não há diálogo e, consequentemente, relações ficam prejudicadas, crescem radicalismos, polarizações, preconceitos e juízos inadequados.
Interessante é recordar o dito popular: “Quem diz o que quer ouve o que não quer”. Sublinha-se, pois, o aspecto de que a liberdade de dizer não dispensa o compromisso ético com a verdade. Não é tarefa fácil. O ato de falar depende de determinada interpretação, pois há certa parcialidade que se evidencia com um olhar hermenêutico. São vozes e vozes que buscam se fundamentar na verdade, ao menos na verdade de seu território. A partir dessa premissa, quando se observa diferentes enunciados na contemporaneidade, constata-se que está em curso a consolidação de uma Babel, acirrada pelas estreitezas de diferentes interpretações dos que pensam possuir a verdade, quando, em vez disso, falam a partir de interesses dos lugares que ocupam.
Nesta Babel de vozes está o enfraquecimento da capacidade profética do ser humano, seja pelo silêncio permissivo perante as injustiças ou pela incapacidade de escutar os diferentes clamores. As profecias gradativamente perdem espaço para as conivências e o ser humano torna-se incapaz de cultivar o sentimento de indignação frente a situações que precisam ser mudadas. Trata-se de um sinal da crise do compromisso comunitário. O que passa a valer hegemonicamente é o que está garantido no horizonte sedutor do consumismo, advindo da lógica do mercantilismo e da sedução de um bem-viver egoísta, mesquinho. Essas lógicas e dinâmicas são tão traiçoeiras e cegam a tal ponto que não se consegue revestir discursos com a coerência de um testemunho revelado na própria conduta. Isso faz lembrar Jesus numa invectiva forte, contundente e atual, a respeito de seus conterrâneos: eles falam, mas não praticam o que pregam.
Sem profecias, o mundo se perde. A voz profética incomoda, por tocar o âmago de feridas, com a assertividade sustentada pela indignação, aspecto que não pode faltar, sob pena de alimentar a indiferença e incapacitar para aquele olhar que gera a compaixão e disposição de cuidar. Por isso mesmo, as vozes múltiplas do tempo atual, quando é necessário construir novos entendimentos e formatar novos sistemas, são desafiadas a retomar e fazer renascer as profecias. Existem medos, desconfianças, titubeios, rigidez, disputas cegas contracenando com a demanda reprimida de vozes proféticas capazes de abrir caminhos, com lucidez, no horizonte dos anseios da humanidade.
Os cidadãos estão desafiados a unir suas vozes, nos seus diferentes tons, por uma sinfonia humanística que emoldure a caminhada da sociedade. Importante é deixar-se interpelar, esperançosamente, pelos sonhos do Papa Francisco, na sua recente Exortação Pós-Sinodal, “Querida Amazônia”, nos largos horizontes dos sonhos social, cultural, ecológico e eclesial. O primeiro passo da profecia será sempre reconhecer a própria condição de aprendiz, aberto a remodelações, correções e a novas práticas, particularmente pelo convencimento de que a hora exige um falar com força para desencadear transformações.
Assim, a Igreja Católica, intrinsecamente fundamentada na profecia, pelas exigências irrenunciáveis do Evangelho de Jesus, vive agora interpelante desafio, com sua voz própria – sem empréstimo de outras vozes, mas contracenando, para que haja harmonia: contribuir para que os muitos “dizeres” constituam um coro profético, na contramão clara e corajosa de desmandos do conservadorismo político, de atentados insanos contra a democracia, de sandices contra a Constituição, cultivando indignação diante de qualquer ameaça às pessoas e aos direitos. Dessa forma, ajudar na consolidação de uma sociedade cada vez mais democrática, balizada em marcos civilizatórios que possibilitem a superação de atrasos e de descompassos, produzidos por lógicas perversas, alicerçadas na idolatria do dinheiro. Continuem as vozes, renasçam as profecias.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB)