Vivemos em uma sociedade sem aura, onde o culto ao corpo virou uma obsessão e o olhar do outro é o que define se a minha vida tem ou não algum sentido. Se, por um lado, o corpo é fotografado, admirado e apreciado como verdadeiro deus das vitrines digitais, por outro, a alma é esquecida e abandonada às traças. Ela está sempre ausente dos holofotes e ninguém pergunta por ela.
Enquanto o narcisismo ganha contornos de endeusamento, a “menina dos olhos” se mantém oculta aos olhos dos apresados, embora esteja sempre em casa louca para ser ouvida.
No caminho espiritual, reflexão e oração andam juntas, de mãos dadas.
Não é um caminho apenas de consolo e resposta, mas, sobretudo, de perguntas, e a principal delas é a pergunta sobre si mesmo.
A reflexão desempenha um papel importante entre o equilíbrio e o discernimento, embora Merton tenha advertido que a vida espiritual não é vida mental, ou seja, não é só pensamento. Para ele, meditar é pensar, contudo, meditar com êxito é muito mais do que raciocinar ou pensar, é muito mais do que afetos, muito mais do que uma série de atos a realizar.
Tanto a reflexão quanto a oração necessitam de certo distanciamento exterior para ganhar sentido. Sem pausa, a vida interior vai definhando e, pouco a pouco, perdendo o seu encanto.
Ao perguntar-se “que tipo de espiritualidade é própria de nosso tempo?”, o filósofo e teólogo espanhol Raimon Panikkar sinaliza para a descoberta de uma espiritualidade integral, ou seja, uma experiência capaz de integrar o ser humano em sua totalidade. Sem nada ignorar, sem nada desconsiderar. Segundo ele, para se chegar a uma compreensão do tipo de espiritualidade para o nosso tempo devemos, antes, nos perguntar: “o que é, pois, o homem?”.
Quem sou eu?
Ao longo da história, a questão fundamental do ser humano era a busca pelo “quem sou eu?”. Ao se deparar com tal questionamento, o indivíduo buscava, no mais profundo de si mesmo, encontrar uma resposta que fosse, no mínimo, sinalizadora e honesta.
Hoje, no entanto, a pergunta ganha novos desdobramentos e tende à superfície do olhar externo: “como sou percebido pelo outro?”. Se sou “curtido”, se sou visto, elogiado, reconhecido… Logo existo!
Vivemos uma época em que ser visto sob o reflexo do outro é mais importante (e menos doloroso) que se ver no espelho da própria verdade.
É o que detecta Henri Nouwen[1]: “compulsivo é o melhor adjetivo para o falso eu. Mostra a necessidade de afirmação. Contínua e crescente. Quem sou eu? Sou aquele que é apreciado, elogiado, admirado, antipatizado ou desprezado. Quer eu seja pianista, negociante ou religioso, o que importa é como sou percebido em meu mundo”.
A religião, não é uma espécie de mágica que torna as pessoas espirituais num piscar de olhos. A busca é processual. Ser religioso, contudo, não é garantia de ser uma pessoa espiritualmente elevada.
É possível encontrar pessoas profundamente religiosas, mas que não conseguem viver uma vida espiritual autêntica e serena. Pessoas dogmáticas demais, às vezes encontram certa dificuldade em lidar com a leveza e simplicidade próprias do Espírito.
Há quem prefira o preceito pelo preceito, a lei pela lei e há quem diga que isto é suficiente para sustentar a vida espiritual. Mas, será que isso é cumprir a vontade de Deus?
Numa recente pregação, na Casa Santa Marta, onde estavam presentes também alguns cardeais, assim se expressou o papa Francisco a respeito daqueles que se limitam ao mero cumprimento das obrigações religiosas:
“Para aqueles doutores da lei, o Verbo não se fez carne: se fez lei: e se deve fazer isso até aqui e não mais, deve-se fazer isto, e nada mais. Assim, estavam enjaulados nessa mentalidade racionalista… Muitas vezes, a própria Igreja que condenou o racionalismo, o Iluminismo, depois, muitas vezes, caiu em uma teologia do ‘pode e não pode’, até aqui, até lá. Com essa atitude, a Igreja esqueceu a força, a liberdade do Espírito, esse renascer pelo Espírito, que te dá a liberdade, a franqueza da pregação, o anúncio de que Jesus Cristo é o Senhor”.
Religião e espiritualidade se cruzam em muitos aspectos, em outros, no entanto, podem ser completamente independentes e seguir caminhos totalmente distintos.
Quando religião e espiritualidade habitam o mesmo teto, mas sem se tocarem, é como se vivessem uma espécie de divórcio estéril onde não houve espaço para a fertilidade do Espírito. Mas, quando ambas se abraçam, a alma se torna livre e capaz de amar sem preconceitos e rigidez. Então é possível colher os frutos desse encontro fecundo.
Por outro lado, se não somos capazes de ultrapassar os “limites” da religião e experimentar Deus no silêncio de nosso espírito, então a nossa religiosidade não será capaz de nos religar a nada. Onde há excesso de religiosidade e escassez de vida espiritual, aí imperam a dureza e a desconfiança.
Francisco Galvão [©resilienciamag] Publicado em:iMissio