A cebola não serve apenas para ser picada ou cortada às rodelas e lançada ao tacho. A sua utilidade não se esgota na cozinha. Prova disso é a sua constante presença na mesa da literatura. Aqui e ali, neste e naquele autor, é evocada como metáfora que, uma vez descascada, camada por camada, com a faca afiada das interrogações persistentes – como o fez magistralmente G. Grass na obra autobiográfica, 1939-1959 – oferece ao leitor uma experiência que bem pode ser lacrimejante, seja pela alegria que suscita, seja pelo desgosto que evoca.
Já o velho Dostoiévski recorre à lenda da cebola – o tal copo de água na linguagem evangélica deste domingo – para acentuar a força dos pequenos gestos, os quais, no juízo final, podem determinar a entrada no Reino dos Céus.
Com efeito, diz a história veiculada pelo escritor russo, havia uma mulher que, depois de fechar os olhos para este mundo, se apresentava como alguém sem virtudes, egoísta e indiferente ao sofrimento dos outros. O seu anjo da guarda, porém, afadigou-se em vasculhar algum gesto generoso que ela tivesse feito para apresentar diante do supremo juiz. Talvez assim pudesse ser salva da condenação eterna.
«Ela arrancou uma cebola na horta para dar a um mendigo», disse o anjo em sua defesa, ao que Deus respondeu: «Pega nessa cebola, entrega-a àquela mulher lá no lago para que a ela se agarre. Se conseguires retirá-la de lá, ela irá para o Paraíso; se a cebola se partir, ela ficará onde está».
Assim fez o anjo. Mas a mulher era tão má, que quando foi puxada do lugar da condenação pela cebola, e os outros condenados se agarraram a ela na esperança de serem também retirados, ela começou a pontapeá-los, dizendo que «a cebola era dela». Com isso, a cebola partiu-se e a mulher mergulhou no lago dos condenados.
Um pequeno gesto teria sido o suficiente. Um pequeno gesto pode, de fato, salvar uma vida. Partilhar uma cebola como quem dá um copo de água. A indiferença, pelo contrário, é um sintoma de «autismo espiritual» que, muito subtilmente, atrofia a vítima na sua capacidade de empatizar com o sofrimento dos outros e, por isso, de multiplicar gestos generosos.
A vítima já está no lago dos condenados mas não sabe. Bastava-lhe, no entanto, esse gesto, expressão da experiência redentora da entrega ao outro, capaz de eliminar a fronteira que separa dois mundos fechados sobre si. Um gesto eterno.
Nélio Pita, CM
Publicado em: Secretariado Nacional da Cultura / Portugal