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Um abraço desarma sempre?

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Não sabemos se o abraço é e será sempre o meio mais eficaz para desarmar alguém que vem armado, no sentido figurado e literal, mas sabemos que graças à coragem e ao abraço demorado de um treinador de futebol numa escola do Oregon, nos EUA, um jovem não disparou as duas armas que trazia consigo.

Este episódio aconteceu há uns meses, mas só agora foi possível ver as imagens captadas pelas câmaras de vigilância do sistema de segurança da escola. O abraço do treinador-professor evitou mais uma tragédia e é impressionante ver o impulso deste homem. Nunca saberemos como acabaria o tiroteio, nem quantos mortos e feridos seriam contados no fim, mas todos ficamos com a certeza de terem sido poupadas vidas de inocentes.

Curiosamente e depois da chamada de atenção de Filomena Martins, no seu Jet Lag – o programa matinal que tem na Rádio Observador – ficamos a saber da existência do vídeo precisamente na mesma manhã em que um professor português foi acusado de supostamente ter agredido um aluno que supostamente o provocou na sala de aula.

As notícias de agressões entre professores e alunos são sempre como granadas prontas a explodir nas mãos de muitos e, sobretudo, na opinião pública. Ontem, o dia em que foi possível ver o exato oposto daquilo que terá acontecido numa escola secundária de Lisboa, ficaram bem expostas duas estratégias para conter a violência, porventura extremas, mas uma infinitamente mais eficaz que a outra.

Ninguém sabe ao certo o que fazer para travar a escalada de agressividade dentro das salas de aula e também poucos saberão o que pensar sobre esta realidade, pois ela tem contornos que não nos permitem um pensamento a ‘preto e branco’. Tudo o que envolve é cheio de nuances e dilemas morais, éticos, sociais e outros. A notícia do professor que ontem alegadamente perdeu a cabeça e usou a sua supremacia física para neutralizar um aluno é uma bomba faz explodir outras bombas e não pode ser encarada isoladamente.

Como ponto prévio e porque também sou professora, devo dizer que defendo clara e inequivocamente que todo e qualquer docente que agrida os seus alunos deve ser punido e retirado do contexto da sala de aulas. Não tenho qualquer dúvida sobre isto e sobre uma suspensão imediata do dito professor que alegadamente agrediu, até se perceberem as circunstâncias e se averiguarem os factos.

Já quanto aos níveis de provocação, hostilidade e agressão dos alunos também é preciso saber do que falamos, quando falamos de situações limite. Infelizmente todos conhecemos histórias reais, mais e menos dramáticas, mas todas elas eloquentes do ambiente que se pode viver dentro de uma sala de aula.

Maus professores e maus alunos sempre os houve e haverá e soa estranho (ou até leviano) vir falar em abraços para travar ataques e evitar vítimas. O instinto humano perante uma agressão é sempre usar outra agressão para se proteger, mas vale a pena ir ao concreto e partir de um caso demolidor que acabou por dar origem a uma situação resgatadora, para tentar perceber o que funcionou ali e pode eventualmente funcionar noutras escolas. Ou seja, o que pode servir para aplacar os ânimos exaltados e o que pode exaltá-los ainda mais, como aparentemente terá acontecido ontem entre professor e aluno.

O exemplo demolidor é o de uma professora em fim da gravidez que levou um bruto pontapé na barriga. O aluno que lhe deu o pontapé sabia muito bem o que fazia e nenhum dos seus colegas evitou a agressão, muito pelo contrário. A professora agredida não voltou a dar aulas e veio a seguir outra professora, mas ambas acabaram por ser substituídas por um docente que conheço há muitos anos e cuja história pessoal e percurso profissional me interpelam profundamente desde que tudo isto aconteceu.

Este professor chegou a uma das escolas mais problemáticas da cidade na sequência dos terríveis acontecimentos e, quando tudo indicaria que seria mais uma vítima, eis que conseguiu ‘dar a volta’ à turma e, ao fim de alguns meses, não só tinha os alunos ‘na mão’, como a sua fama se tinha espalhado de tal forma que havia dezenas de outros alunos a quererem ir às suas aulas. Alunos igualmente complexos e agressivos, devo dizer.

O método do professor que funcionou ali, onde alguns jovens viviam nas fronteiras da criminalidade e muitos já eram considerados marginais, poderá não funcionar noutras escolas e noutras latitudes, mas dá pistas. E ilumina um caminho muitas vezes pedregoso e cheio de sombras ameaçadoras para outros professores e alunos.

– Na altura eu vinha de um ATL também muitíssimo complicado, com alunos muito conflituosos e acho que cheguei a esta turma na lógica inversa à da escola. Eu queria que os alunos ficassem na sala, não queria que deixassem a escola. Queria ter alunos com quem trabalhar.

Todos percebemos a lógica das escolas onde existem alunos turbulentos que afetam as rotinas dentro e fora das salas de aulas e ninguém se espanta que estas mesmas escolas gostassem de se ver livres destes mesmos alunos. Neste ponto acho que todos somos muito realistas e, neste sentido, a entrada deste professor marcou claramente um tempo novo naquela turma altamente tóxica. Ele surgiu como alguém que queria trabalhar com os alunos, alguém que apostava neles apesar de saber que havia ali muita agressividade e erosão. Sabia tudo isto, mas tomou a decisão de tentar não reduzir os piores alunos à sua pior expressão.

– Foi importante olhar para o potencial dos alunos mais complicados e não focar apenas no seu lado mais agressivo. Conhecia este lado, não o ignorava, mas também não deixava que distorcesse o meu olhar e a minha perceção daquela turma. Mas também foi determinante ter uma retaguarda de professores que me ajudaram a não me sentir sozinho. Um destes professores foi de uma enorme lucidez quando levantou a voz na reunião de professores para dizer que devíamos tentar entrar na sala de aulas sem levar connosco apenas a carga mais negativa.

É infinitamente mais fácil dizer do que fazer, certamente. Mas apesar de parecer idílico ou utópico, pode funcionar. Ali funcionou. A combinação entre a ‘página em branco’ e uma atitude consciente de identificação de todo o potencial individual dos alunos, enquadrando os mais violentos nas suas circunstâncias (muitos deles eram e são verdadeiras vítimas de maus tratos nas famílias, pois é sabido que só agride quem se sente agredido, só ofende quem se sente ofendido e por aí adiante numa lógica de mal em pior, digamos assim), acabou por pacificar a turma e dar origem ao tal tempo novo.

– Ser professor é difícil, mas ser aluno também não é fácil. As coisas mudaram muito e já não se aprende da mesma maneira. Os alunos não se interessam todos pelas mesmas coisas, os estímulos exteriores são constantes, eles estão sempre ligados seja através do telemóvel ou das redes sociais, as solicitações são extremas e as expectativas e talentos de certos alunos não se enquadram nos padrões de uma educação formal.

É verdade. E nem sequer estamos a juntar as disfunções nas famílias, o abandono parental, os maus tratos físicos ou psicológicos infligidos a crianças e jovens que também frequentam as escolas. E ao ouvir isto ontem, ao telefone, quando liguei a este professor para me contar as suas estratégias, fui conferindo esta e outras verdades com aquilo que se passa na Cova da Moura, para dar o exemplo que melhor conheço, pois sou co-fundadora da Academia do Johnson, que trabalha com centenas de jovens em risco por pertencerem a comunidades extraordinariamente vulneráveis.

O Johnson foi, ele próprio, um ‘miúdo de rua’, um toxicodependente e alguém que agredia para não ser agredido. Acabou por ser julgado e condenado, passou 10 anos na prisão, e não saiu de lá imediatamente capaz de dar a volta à sua vida. Apenas o fez a partir do momento em que alguém depositou verdadeira confiança nele, quando alguém o chamou pelo nome e, pela primeira vez na sua vida, se interessou por ele.

Acredito que a confiança gera sempre confiança e vejo esta matemática infalível ser aplicada na Cova da Moura, considerada uma das comunidades mais problemáticas da periferia de Lisboa, mas também sei que foi essa a força que usou o professor de quem falo e me pediu para manter o anonimato.

– O que educa é a relação.

Diz este professor. Outros, igualmente brilhantes, acrescentam:

– A única força de mudança é a compreensão!

Conhecer e dar-se a conhecer é um caminho seguro. Ouvir sem julgar pode ser uma ajuda, ainda que muitas vezes pareça que estamos a falar de estratégias para ‘meninos de coro’. Na realidade sejam os mais bem-comportados ou os mais selvagens, todos são sensíveis a esta atitude de criar relação, de apostar na proximidade, de tentar compreender.

Muitos se interrogam sobre a candura de tais propostas, mas vale a pena ver filmes tão lendários como o Clube dos Poetas Mortos e outros, ou ouvir TED talks ultra inspiradoras sobre educação, para perceber a substância da relação e da influência entre professores e alunos.

Se foi verdade que o professor agarrou um aluno de 13 anos pelo pescoço e bateu com a cabeça dele numa secretária, isto prova que no mínimo não está preparado para dar aulas, pois todos sabemos o poder que os telemóveis, tablets e computadores têm para desviar a atenção dos alunos em aula. Se queremos competir na atenção deles e fazer os alunos desviar o olhar dos écrans não é certamente através de gestos violentos, pois também a agressividade gera mais agressividade.

Diria que uma grande maioria de professores vive a sua profissão com paixão e sentido de missão ( não é certamente pelos ordenados e muito menos pelo reconhecimento do estatuto, para não falar da bizarria de certas colocações nem do perverso sistema que afasta os docentes das suas famílias nucleares), a maioria são profissionais que tentam encontrar estratégias criativas e eficazes para lidarem com todos os alunos, fáceis ou difíceis, estudiosos e aplicados ou relapsos e desinteressados. É incrivelmente desafiador enfrentar os mais desafiantes e não é fácil passar horas, dias, semanas, meses, anos a fio em salas de aula com alunos que perturbam, ofendem, provocam, agridem, não reconhecem regras e causam distúrbios.

Por tudo isto e por muito mais que fica por dizer, mas também porque à hora a que escrevo não se sabem detalhes sobre o que se terá passado na escola de Lisboa, fico por aqui e sugiro que vejam o vídeo do treinador que abraça o jovem atirador até o conseguir desarmar e ele se entregar. Quando se esperava que o atacasse, abraçou-o.

Cabe a cada um de nós tentar perceber, caso a caso, qual a medida do abraço e, claro, se ainda é possível abraçar, mas volto aos ecos que o professor resgatador deixou em mim para concluir que antes do impulso de esganar e tentar usar a força para resolver uma situação de desatenção ou provocação, há muitas outras saídas.

– Por incrível que pareça, até com os alunos mais agressivos é possível usar uma medida que combina autoridade, humor e amor.

Se este professor o diz, eu acredito porque vejo os frutos que ele, o Johnson e tantos outros colhem com a sua atitude firme, mas resgatadora.

Laurinda Alves (O Observador)

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