Não é fácil viver na superfície de si mesmo. De fato, para viver assim é preciso fugir de si avidamente, evitando qualquer momento de silêncio no qual a própria voz possa ser ouvida ou espelho que possa devolver o próprio rosto. E isso é vida sem descanso, pois sempre estamos à cata de nós mesmos e, uma hora ou outra, acabamos por nos depararmos com quem somos.
Em tempos de selfies, o celular mostra a feição escondendo simultaneamente a própria face que, comumente, recobre-se de filtros e expressões lúdicas com caras, bocas e biquinhos. Evita-se reconhecer, com Cecília Meireless, o trágico olhar sobre si:
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
A minha face?
Encontrar-se corresponde a caminhar em terreno perigoso ou singrar em mares não navegados. Nunca se sabe quando se cairá na própria profundidade, e não é fácil nadar nessas águas. Viver na superfície parece mais seguro, mas é no âmago de si onde se pode encontrar a própria riqueza, vida e beleza. De modo ambíguo, possuímos também feiúras, pobrezas e potência de morte, de modo que, quando alguém foge de si, pode estar evitando não só aquilo que possui de trevas, mas também sua grandeza. Nosso melhor e nosso pior partem do mesmo lugar.
Essa ambivalência gera em nós o desejo de realizar as próprias potencialidades ao passo em que se pode também temer a própria grandeza e evitá-la. Isso explica, em parte, a angústia que sentimos em querer realizar aquilo que nos percebemos capazes de ser, bem como o medo das consequências disso. Às vezes tais constradições e apelos são insuportáveis e culminam em fuga.
Duas formas para isso são a loucura e o suicídio. A primeira é uma fuga para dentro, onde o mundo representado diante da pessoa é apenas seu mundo subjetivo, cindido com a realidade. O segundo é uma fuga para fora, quando a pessoa se joga contra a realidade que lhe paresse opressora, dura, cruel. O louco rompe com o mundo objetivo e o suicida se aniquilando. Ambos não suportam a relação com o mundo ou com seu lugar nele.
Nesse sentido, o melhor espelho para a devolução de si é o rosto do outro. Quando amo, reconheço-me como dom para alguém sem fechar-me em mim, já que também reconheço no outro o mesmo valor, vendo-o como digno de receber o dom que sou. De outra forma, descentro-me em direção àquele a quem me dôo, abnegando de qualquer egoísmo, sem negar-me ao ponto de não reconhecer o próprio valor e dignidade. No encontro profundo com o outro, tenho reveladas as minhas próprias profundezas, pois na relação estão sempre expostos meu melhor e meu pior.
Amar é desafiante porque implica nesse duplo reconhecimento, de ver a si e o outro como dom. Contudo, o mais difícil do encontro é deixar-se ser amado. Quando o outro me ama, está ele acolhendo-me na totalidade, com aquilo que gosto e com o que rejeito de mim. Deixar-se ser amado, portanto, implica em aceitar-se. Há quem fuja disso porque não pode se pensar como peso ao outro, ainda que seja um peso que este escolheu carregar. Fugir do outro é fugir de si. A relação autêntica de amor não se dá no razo, mas no mergulho profundo da intersubjetividade, essa instância onde encontro o outro e nele me encontro.
Talvez seja disso que fale o filme “Star is born” (Nasce uma estrela), da coragem de sair do raso e de se realizar como pessoa na grandeza e totalidade. De um lado, temos Ally, mulher que, amando e sendo amada, floresce o que tem de melhor, desenvolvendo suas potencialidades. De outro, temos Jackson Maine que resiste em ser amado e, por não acolher a própria sombra, crê que é um peso para quem ama. Ele se automutila mergulhando no vício como um modo de fugir de si, da própria história. Ao passo que ele entra em declínio, fugindo de si como quem acaba com a própria vida aos poucos, Ally crescerá neste amor e, por ele, tentará resgatar seu amado. A canção tema do filme nos coloca esse problema:
Tell me something, boy
Aren’t you tired tryin’ to fill that void?
Or do you need more?
Ain’t it hard keeping it so hardcore?
Fugir de si só é possível na aniquilação. Tendo a vocação de brilhar, a estrela que colapsa pode se tornar um buraco negro.
Gilmar Pereira
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
Bacharel e licenciado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CESJF)
Bacharel em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)