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Nós que muitas vezes, demasiadas vezes, metemos tudo no mesmo saco, passamos a olhar com desconfiança para algumas palavras. Uma dessas, colocadas sob suspeita, é a palavra leveza. As razões para um crescente mal-entendido em relação a ela são múltiplas, e — temos de reconhecer — obrigam-nos a viagens não necessariamente fáceis ao interior de nós mesmos. Eu identificaria três dessas razões que nos fazem viver em conflito. A primeira de todas é que nós humanos, com todo o nosso peso, nunca deixamos de aspirar à leveza. Podemos não ter consciência disso, podemos sentir que os nossos dias são de chumbo, e que, no emaranhado de tudo o que nos cabe viver, experimentamos unicamente o contrário da leveza. Contudo, habita-nos um persistente e interminável desejo disso que a leveza significa, mesmo quando esse desejo se exprime apenas como um desencontro, um tormento ou uma sede. Vem-me à memória a passagem de um poema de Antonia Pozzi: “Trago o desejo daquilo que é leve/ no coração que pesa.” Nós somos esse “desejo daquilo que é leve”. Não é por acaso que, por exemplo, no seu extraordinário estudo sobre a morfologia dos contos populares, o russo Vladimir Propp insiste tanto na figura do “herói que voa pelos ares”. No dorso de um cavalo ou nas asas de um pássaro, num carro de fogo ou sobre um tapete voador, arrebatados por um espírito ou pela força do vento: todos nós conhecemos histórias em que os heróis rematam assim o seu percurso. Ora, há que dizer que não se trata apenas de um imaginário literário, mas que estamos sim perante uma simbólica capaz de descrever a nossa universal condição antropológica. Mesmo quando desistimos da leveza, a leveza torna, não desiste de nós.

 

A segunda razão que nos faz estar em luta com a leveza como que contraria esta primeira. E prende-se com a síndrome da “insustentável leveza do ser”. O escritor Milan Kundera, no célebre romance que adota esse título, faz a anatomia desse desacerto. Por que razão acontece — pergunta-se ele — que na vida de cada ser humano tudo aquilo que escolhemos e colocamos do lado da leveza acaba por revelar, cedo ou tarde, um peso insustentável que desconhecíamos? Isso é assim com tantas das nossas melhores ideias, com formas de organização cultural e política que julgámos primeiro fulgurantes, mas também com incontáveis pormenores da nossa humanidade. Um certo cinismo que caracteriza a vida adulta e que a barrica num niilismo encapotado tem a ver com a ativação do instinto de defesa face às reviravoltas inevitáveis no interior do binómio peso-leveza.

 

O terceiro motivo tem a ver com a necessidade de libertar o conceito de “leveza” dos seus equívocos e perceber que o caminho de aproximação a ela exige uma espécie de conversão do nosso modo de olhar a vida. Italo Calvino, que considerou a “leveza” uma das poucas palavras fundamentais para este novo milénio, escreveu que há uma leveza da frivolidade, mas há também uma leveza do pensamento e que esta “pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca”. Vale, por isso, a pena perguntar de que falamos quando falamos de leveza? Não é fácil explicar o que é a leveza. Calvino, mais do que um conceito, descreve-nos um processo pessoal de descoberta: “Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo a mim mesmo que, como Perseu, eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Preciso mudar de ponto de observação, preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controlo.” A leveza ensina-nos alguma coisa importante sobre a arte de renascer.

 

Dom José Tolentino Mendonça
iMissio

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