Talvez seja a tarefa mais urgente da condição humana. O tema ressurge, como erva daninha, aqui e ali, no quintal da nossa história. Percebemos que o assunto tem raízes que nos obrigam a pensar na estratégia, uma e outra vez, para as eliminar. Por vezes desvalorizamos esse empecilho ou procuramos justificações como quem procura um analgésico. «Amanhã já não haverá vestígios», pensamos, mas a memória é mais forte do que a vontade e a imaginação, atrelada à consciência moral, reclama a reabertura dos assuntos em aparente arquivo morto.
Certo é que nascemos leves e flexíveis. À sombra dos progenitores iniciamos uma aventura sem retorno, irrepetível e imprevisível. Avançamos guiados por um olhar que se projeta no futuro, que resiste em revisitar o passado, porque, neste tempo, «parar é morrer» e «águas passadas não movem moinhos».
Talvez num amanhã longínquo, quase cegos para discernir as sempre novas encruzilhadas do mundo, reavaliemos, com olhar retrospetivo, o percurso percorrido, as decisões tomadas, os sonhos cumpridos e os que, por medo ou inércia, ficaram retidos na soleira do desejo. Nessa altura, vendo-nos tão distantes do que fomos, pesados e rígidos, talvez nos apressemos a reescrever a história como quem descose e volta a coser o mesmo tecido, com as já gastas linhas do tempo, na expetativa de dar novo sentido às situações difíceis. Vemo-nos a curar feridas, a retomar diálogos interrompidos, a refazer o puzzle do absurdo, a responder apressadamente, enfim, às velhas perguntas. Descobrimos, de novo, que pisamos as tais ervas, as mesmas que persistem em reaparecer entre as pedras de uma calçada. «É tempo de te reconciliares», dizes de uma vez por todas.
O já idoso apóstolo Paulo, tendo percorrido um percurso pejado de ruturas, lembra aos irmãos mais novos que, em Cristo somos recriados, isto é, recuperamos a graça original, a leveza e a flexibilidade interior. No entanto, é indispensável passar pela porta estreita da reconciliação. No seio da nova comunidade, alimentados pela Palavra eterna, aprendemos a olhar o futuro, sem esquecer o que ficou para trás. Sim, em Cristo, avançamos, mas, de vez em quando, revisitamos o passado, como quem olha pelo espelho retrovisor. E reconciliamo-nos uma e outra vez. Naturalmente. E este processo faz-nos crescer e amadurecer.
Não é uma matéria fácil. Supõe, por exemplo, enterrar as imagens idealizadas do outro, um pai e uma mãe, um irmão ou um vizinho, para aceitar a realidade frágil da imperfeição e da insuficiência. Reconciliar encadeia sequencialmente os verbos reconhecer, aceitar, perdoar e recomeçar.
Evitar o caminho da reconciliação é permanecer vítima da recordação que alimenta o rancor e torna-nos depósitos ferrugentos de um material tóxico e em desuso.
Esta é a grande tarefa. Não apenas desta Quaresma, mas de toda a nossa existência.
Pe. Nélio Pita, CM
Publicado em: iMIssio