Há indicações históricas de que já no séc. IV se celebrava uma festa em honra de S. Pedro e S. Paulo. Não é fácil descobrir as razões que levaram aqueles primeiros cristãos a unir em uma mesma celebração litúrgica duas figuras humanas tão diferentes. O mais provável é porque os dois foram martirizados em Roma durante a perseguição de Nero e quase ao mesmo tempo. Pode ser também porque suas sepulturas estivessem juntas durante muito tempo. É também provável que muito cedo se descobriu a complementariedade desses dois homens. De qualquer forma, são um claro exemplo de que personalidades tão diferentes, que inclusive discutiram duramente aspectos importantes da primitiva fé cristã, pudessem ser dois seguidores autênticos de Jesus.
Mas, desde sempre, Pedro e Paulo foram considerados como as colunas da Igreja. No caso de Paulo é tão evidente que alguns estudiosos chegaram a dizer que ele foi o verdadeiro fundador da Igreja, enquanto organização. Pedro é o personagem mais destacado em todo o NT. Mesmo assim, sabemos muito pouco de sua vida. Pelo contrário, Paulo é a pessoa melhor documentada. É o único apóstolo do qual podemos fazer uma biografia quase completa.
O texto do Evangelho da festa de hoje nos ajuda a reler nossa vida. Ali afirma-se nossa identidade: temos um nome, que carrega algo sólido, firme, resistente, que não se desfaz com as adversidades existenciais (crises, fracassos…). A identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é consistente, seguro… no seu interior e não pelo nome em si.
“Tu és Pedro e sobre esta rocha edificarei minha Igreja…”
E sobre ela, ao longo dos séculos, se assentou a fé dos cristãos de todos os tempos. Mas a Pedra da qual Cristo fala não é Pedro, pois a pedra da sua presunção, de sua segurança, de seu orgulho se transformou em cacos com suas negações na noite da Paixão. Mais tarde, Pedro, estará em condição de entender que a Pedra é unicamente Jesus. Somente Ele oferece toda a segurança. Pedro nos alenta na fé: confirma os seus irmãos, mas a fé é em Jesus Cristo.
O fundamento da Igreja é Jesus Cristo. Quem é decisivo na Igreja é Ele. O papa, os bispos, a clero tem sua missão e sua importância, mas a pedra angular é o Senhor. Igualmente decisivo é o Reino de Deus, não a Igreja. A Igreja é aquela que trabalha em favor do Reino de Deus, mas o fundamento último é o Reino de Deus. Um Reino de justiça, de amor e de paz.
Mateus, no evangelho deste domingo, nos situa diante de um jogo de palavras entre “petros” (pedregulho, pedra sem estabilidade e que se esfarela) e “petra” (rocha firme, consistente). Simão é, por si mesmo, um “petros”, mas através de sua confissão messiânica, acolhendo a revelação de Deus e confessando Jesus como o Cristo, Filho de Deus vivo, alargou sua interioridade para que o mesmo Jesus ali se fizesse “petra” (Rocha – fundamento). Pedro chega ao grau máximo de identificação com Jesus, que mais tarde Paulo afirmará: “Não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. Pedro é proclamado bem-aventurado porque na sua fragilidade (petros) Jesus se faz presença solidificada (petra). A Igreja se fundamenta na misericórdia de Deus, não na força dos homens. A Igreja é a comunidade dos pecadores perdoados, não a comunidade dos perfeitos.
A primeira coisa que estes dois personagens, Pedro e Paulo, nos ensinam é que não é nada fácil aceitar a mensagem de Jesus e segui-lo. Precisamente, os dois foram os mais resistentes, cada um à sua maneira, na hora de dar o passo e aceitar o verdadeiro Jesus. Tanto Pedro como Paulo eram pessoas muito religiosas e que se encontravam muito confortáveis dentro do judaísmo. O encontro com Jesus desbaratou essa segurança e os fez entrar na dinâmica de uma autêntica relação com o Mestre galileu. Pedro, com toda espontaneidade, não perde ocasião de manifestar sua oposição àquilo que o Mestre dizia. Paulo foi um fanático na defesa de sua religião. Por defender o judaísmo se converteu em perseguidor de todos aqueles que seguiam a maior heresia surgida dentro do judaísmo: “os seguidores do caminho”.
Mais ainda: pode-se perceber claramente nos evangelhos os obstáculos que eles tiveram de superar para passar do conhecimento de Jesus à vivência de tudo o que Ele pregou. Seria muito interessante descobrir que somente a partir da vivência pessoal alguém pode se lançar à missão de comunicar uma fé. Isto explica como um punhado de pessoas, em pouco tempo, foram capazes de transformar o mundo até então conhecido.
Essa dificuldade que Pedro e Paulo tiveram para seguir Jesus, pode ser de muita ajuda para nós hoje. Pedro, antes da experiência pascal, seguia a um Jesus que se encaixava em seus ideais e interesses de bom judeu. Paulo, antes da queda a caminho de Damasco, servia ao Deus do AT que estava a anos-luz do Deus de Jesus.
Não serve para nada seguir a Jesus sem conhecê-Lo a fundo, identificando-nos com seu modo de ser e viver. Só depois de termos superado os nossos pré-juízos, estaremos preparados para despertar nos outros o desejo de viver o mesmo seguimento. Todos temos de passar pelo doloroso processo de maturação na fé, pelo qual passaram Pedro e Paulo. No caso deles, a dificuldade se agravou porque os dois tiveram que dar o salto de uma religião centrada na Lei a uma experiência interior de seguimento, o que não é em nenhum caso, algo cômodo.
Da aprendizagem de uma doutrina à vivência do seguimento de uma Pessoa, há um grande percurso que todos devemos fazer. Sem essa passagem a fé se converte em pura teoria, que torna estéril nossa vida e nem desperta sedução nos outros. Talvez esteja aqui a causa de muitos fracassos no caminho da evangelização. Estamos mais preocupados em “passar” uma doutrina, uma moral, uma religião… e não deixamos transparecer em nossas vidas que somos seguidores d’Aquele que é Rocha em nosso interior.
Na origem do discipulado e da igreja está sempre presente a consciência de termos sido chamados. A vontade e a decisão de cada um são imprescindíveis, mas são despertadas pela chamado e testemunho de outros, pelo chamado de Jesus e, em último termo, pelo chamado do próprio Deus. Isso é o que significa originariamente o termo “igreja” (ekklesia): “comunidade de chamados”. No chamado de Jesus, Pedro e Paulo reconheceram o chamado de seu próprio interior, o chamado do povo sofredor, o chamado dos tempos difíceis e, em última instância, o chamado do Deus grande e próximo que lhes convidava à identificação com seu Filho e ao compromisso com o Reino.
Texto bíblico: Mt 16,13-19
Na oração: É o Espírito que, guiando-nos pelo caminho da escuta de nosso “eu interior”, nos faz sentir originais, únicos, sagrados…
A oração é a chave interior que abre caminho para chegarmos até o “eu original”, aquele lugar sólido, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde mergulhamos no silêncio, à escuta de todo o nosso ser.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa sobre a qual encontramos segurança para caminhar na vida, superando as dificuldades e as inevitáveis resistências na vivência do Reino.
– Dê nomes aos seus recursos internos, valores e capacidades, sonhos e desejos… que dão solidez à sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj