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Profissão, identidade e cidadania

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Não sei se o povo tem o governo que merece. Mesmo porque, povo é uma categoria muito ampla e diversificada. Constituído em sua maioria por pessoas de bem, digamos de cidadãos cientes de seus direitos e deveres, o povo brasileiro inclui, no entanto, uma malta de predadores que tornam a vida em sociedade quase insuportável.

Não bastassem os políticos e instituições públicas corruptos e irresponsáveis, a sociedade se vê acossada pela criminalidade violenta, pelo medo de andar nas ruas e por todo tipo de imprevisto na vida cotidiana. Ninguém confia em ninguém e isto é o oposto da condição de cidadania que, além de liberdade e igualdade de direitos e deveres, pressupõe elevada dose de confiança no semelhante.

Pergunto-me até que ponto a cidadania incompleta de uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais, pelos baixos níveis educacionais, pelo desemprego e pela instabilidade do mercado de trabalho seria responsável pela proliferação de todo tipo de psicopatas, estelionatários e boçais.

Estudos indicam que cerca de 4% dos brasileiros apresentam, em maior ou menor grau, traços de psicopatia, o que equivale a cerca de 8 milhões de indivíduos. Inteligentes e ambiciosos circulam com desenvoltura no meio político.

Estas sociopatias não conhecem classes sociais, atingem democraticamente todas as camadas da população: os ricos que vivem, muitas vezes, de privilégios que usam com maestria, as classes médias que se vêm ameaçadas de empobrecimento e os pobres que são humilhados e costumam não ter trabalho certo.

Dado que a profissão é a principal fonte da identidade adulta, não é difícil concluir que a inserção precária no mercado de trabalho seja motivo da angustia que leva muita gente a delinquir. Pergunte a um emergente de classe média qual é sua profissão e ouvirá que ele “mexe” com construção, “mexe” com venda de “importados” ou de carros usados. Mexe, ou faz “rolo”, até com advocacia.

Esse mexer é o sinal mais claro de inconsistência profissional e, portanto, de identidades individuais e coletivas pouco sólidas. Esta situação de anomia generalizada favorece a busca de alternativas – no caso, meramente simbólicas – de integração social através de cultos religiosos, de torcidas de futebol organizadas, de gangues criminosas ou, mesmo, de inofensivas e indecifráveis tatuagens pelo corpo.

Se, por um lado, os ladrões e estelionatários, favorecidos pelos meios eletrônicos, disseminam a desconfiança entre todos, por outro, os boçais (estúpidos, rudes, grosseiros e ignorantes, segundo o Aurélio) se incumbem de ampliar a selvageria no trânsito, de espancar e, com frequência, matar mulheres e pessoas inocentes. Caso contrário, como explicar os absurdos níveis de violência registrados no país?

Flávio Saliba
Formado em Ciências Sociais pela UFMG (1968)
Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris (1980)
Pós-doutorado na Berkeley University (1994)
Professor de Sociologia da UFMG.

Publicado em: Dom Total

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