O papa Francisco, num de seus primeiros discursos depois da eleição, falou da necessária atenção aos que estão na periferia da existência. Volta e meia me lembro da expressão, seja pelo seu ineditismo, seja pela pertinência que nela pressinto. Se não se trata, apenas, de periferia no sentido político-social, emprego mais habitual da palavra, o que ela aí quer dizer? Pode ser um lugar antropológico? Não sei bem, arrisco uma leitura. Socorro-me de Guimarães Rosa, que num conto insuperável, O Espelho, disse que “…vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes”. Será assim? Periferia da existência quer dizer isso, nosso confinamento nas nossas profissões, nos múltiplos papéis que desempenhamos, nas definições mais arrumadas que reservamos para nós mesmos, nos saberes e nos costumes nos quais nos dissolvemos? Sendo assim, pode ser que, seduzidos pelo sucesso destas iniciativas, façamos da periferia da existência nossa residência permanente. Mas o preço a ser pago não será alto demais, não nos esvazia de muito? A céu aberto, distante da periferia e perto do coração, a existência é mais desafiadora e impermanente, tecida, em desigual medida, de dores e de alegrias, das inevitáveis frustrações e das requeridas coragens, dos amores e dos temores.
A nenhum de nós é possível permanecer muito tempo sem o abrigo de uma rotina, sem um retorno, ainda que provisório, para o que o papa chamou de periferia da existência. Mas talvez o rumo de nossa cultura, por ter se contentado com essa periferia, tenha, em grande parte, perdido o sentido da gravidade da existência, do que confere singularidade e sentido à vida humana. E, para muitos, não deixa de ser surpreendente que venha do cristianismo, de um cristianismo marcadamente existencial, do cristianismo de Francisco, essa lembrança.
Para pensar na quinzena:
A sugestão é a leitura do conto O Espelho de Guimarães Rosa, no volume Primeiras Estórias. Mas não resisto à tentação de citar um trecho: “Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos em parte – exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra?”
Ricardo Fenati
Filósofo, membro da equipe do Centro Loyola
Publicado em: Centro Loyola BH