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O risco de perder a alma

As experiências humanas são repletas de muitas tentações. Por exemplo, o poder, a fama, o acúmulo de bens, a prepotência, a falta de diálogo, a dominação… São muitas as possibilidades de se perder a paz, o bom humor e a direção do caminho. É que, movidos pelo ímpeto de vencer, de nos darmos bem em tudo a fim de realizar alguns desejos, abandonamos a disciplina, o esforço e o comprometimento com alguns valores fundamentais e acabamos “vendendo” até a alma, como se diz popularmente.

Muito intrigantes são as palavras de Jesus quando se direciona a seus interlocutores. Os temas são variados, mas a forma e a sensibilidade como ele aborda cada um é de uma profundidade incomparável. Veja essa, por exemplo: “o que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” (Mc 8,36). A simplicidade da pergunta é do tamanho de sua abrangência. Alguns textos usam a expressão “vida” em vez de alma. De qualquer forma, uma tem estreita relação com a outra e ambas nos remetem ao sentido de uma existência de qualidade.

A tentação de passar por cima dos valores pessoais e grupais para “levar a melhor” é uma constante na jornada humana. Os atalhos surgem muitas vezes como a melhor opção para ganhar dinheiro fácil e rápido, conquistar uma vaga, seja na fila, no trânsito ou no emprego, ganhar uma licitação ou concorrência, atingir o sucesso a qualquer preço… Como sempre, os atalhos são provocantes e atraentes! Por eles somos, não raras vezes, ludibriados, pois nos dão a sensação da conquista imediata, mas carecem de duração e consistência.

Por isso, a pergunta de Jesus é sábia: “O que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” Essa pergunta nos remete a outras: De que vale investir tanta energia e tempo para se conseguir algo escuso se isso pode obscurecer a consciência e embaçar o olhar? Será que falaríamos sobre qualquer assunto, com liberdade e consciência tranquila com um filho ou cônjuge? Obviamente, não se trata aqui da complexidade de certos temas, que estariam fora do alcance de compreensão, mas da sua natureza. Como você responderia à pergunta: “papai, você também sonega impostos?”. Você costuma ultrapassar pelo acostamento com o intuito de chegar mais cedo e na frente dos outros? Até que ponto você usa seu nome, título ou posição hierárquica para beneficiar amigos e parentes? Como você lida com uma oferta de propina numa negociação? Quantas vezes você já se sentiu deslocado ou inadequado por ensinar um valor que você mesmo não vive ou pratica?

É fato que muitas vezes nos servimos da mentira e nos enganamos a nós mesmos como forma de sobrevivência e para darmos conta de algumas fragilidades. Contudo, é uma atitude que tem seus limites, pois gera sabor amargo e autodesvalorização. A provocação de Jesus está em não perdermos a integridade, a inteireza e a paz interior. As contradições e paradoxos são nossas companheiras e merecem cuidado e atenção. Senão, corroem o núcleo existencial e empobrecem o coração e as relações. A dinâmica por vezes perversa de querer ganhar tudo e sempre, nos leva a passar por cima de pessoas, ideias, crenças, valores… E aí perdemos a alma, perdemos a vida!

Norman Schwarzkopf, um general do exército americano, certa vez disse que “a liderança é uma poderosa combinação entre estratégia e caráter, mas, se for preciso abrir mão de uma delas, que seja a estratégia”. Ou, como diz Mário Sérgio Cortella, “eu morro louco, mas ninguém arranca minha inteireza”. É que isso tem a ver com integridade. Tem a ver com proteger a dignidade própria e a dos demais; tem a ver com valores perenes e realizadores de vida. Em última instância, assegura a proteção da própria alma, da essência e do que realmente vale a pena.

A alma (do hebraico neplesh e do latim, anima) é a dimensão interior, sede dos afetos, sensações e paixões. No passado, mais entendida como um aspecto diferente do corpo, imaterial, de cunho espiritual. Hoje, entendida mais como integrada ao todo humano, em relação direta com o material, o corpóreo. Somos alma e corpo, numa relação integrada. Um dá sentido ao outro. Tomada no sentido latino do termo, Anima se associa ao sopro que nos mantém vivos, acesos, animados. Alguém desanimado é alguém com sopro baixo, respiração lenta, olhar perdido, vago; sem energia suficiente para encarar desafios, subir montanhas, enxergar a vida com olhar límpido e transparente. Desanimados (ou desalmados) perdemos da vida a cor e o sabor e nos tornamos objeto, matéria apenas, inerte, insossa. Urge, pois, viver animados (cheios de alma), para dar sentido às buscas e conquistas. E cuidar para não perder essa dimensão vital.

Usando as palavras de Jesus, é preciso “vigiar e cuidar”! Vigiar para não cair na tentação de querer ganhar o mundo a qualquer preço. Cuidar daquilo que é duradouro e gerador de felicidade. Ao mesmo tempo, não cair na dicotomia que separa o material e o espiritual, o sagrado e o profano, o céu e a terra, imanente e transcendente. O desafio reside em integrar todas as dimensões que nos permitem viver uma vida mais plena possível. Para isso, vale um permanente esforço em valorizar os bens materiais, o dinheiro, o trabalho, sem se perder com eles ou por eles. Da mesma forma, permitir que todas as dimensões materiais e humanas sejam invadidas pelo sopro que é capaz de dar vida e alma a tudo o que fazemos.

Cuidar da alma é esforçar-se para manter a centralidade, numa constante revisão e avaliação da escala de nossos valores em confronto com os valores dos demais. E cultivar o sopro que mantém animadas a esperança e a fé, capazes de nos manter íntegros e de cabeça erguida.

Vanderlei Soela
Graduado em Psicologia e Pedagogia. É Mestre em Aconselhamento Pastoral e especialista em Gerenciamento de Projetos
Atua como professor de Gestão de Pessoas, Ética, Liderança e Equipes, Sustentabilidade e Espiritualidade.
Autor de livros e artigos de psicologia, gestão e espiritualidade

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