A crueldade do mundo é algo que dói. Em certa canção de Cartola, o eu lírico dizia: “Preste atenção, o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos/ Vai reduzir as ilusões a pó”. No tom melancólico da música, o mestre do samba cantava a advertência que a todos assola: os sonhos se desvanecem e os esforços de um projeto podem se perder.
Os sonhos têm a ver com o desejo de realização das potencias que cada qual percebe em si. Percebo-me de determinado modo e quero realizar isso no mundo. Não adianta ser artista só para si mesmo se você não cria, não produz arte (ainda que guarde numa gaveta). Não adianta se perceber cuidador, sentir-se vocacionado à ajuda do outro e se ver metido em burocracias que lhe isolam e impedem do serviço aos demais. Aquilo que percebemos como potencialidade pede cumprimento no mundo da vida.
É daqui que vêm as frustrações, da dificuldade imposta pelo mundo a cada um no cumprimento de sua própria vocação, dom e talento. Você se percebe propenso a ser e fazer mais do que já é, mas se depara com o ordinário da vida: as contas para pagar, a necessidade do trabalho, as disputas do mercado, a doença, os problemas de acesso àquilo que poderia realizar o próprio sonho. Que frustração não tem um pai ou uma mãe, realmente vocacionados à paternidade e maternidade, e que não podem se dedicar presencialmente aos filhos, justamente porque se vêm ocupados na garantia do sustento destes?
O discurso que se escuta na juventude é o de que os sonhos são possíveis e que basta estudar, empenhar-se e ter força de vontade que tudo vai dar certo. Pois é, não é bem assim. Mas ao mesmo tempo, sem o sonho, sem a capacidade de se projetar numa realidade que ainda não se tem, dificilmente poderíamos suportar o presente, as dores e as frustrações do que não realizamos.
A relação com o tempo talvez precise de uma dupla dimensão, a capacidade de sonhar, mas também a de saborear o presente naquilo que ele é, com suas limitações e faltas. E nesse presente, tentar ser quem se é. Afinal, a paternidade não se reduz à presença do filho, mas o espírito e a intenção paternal que tem no filho o seu foco; a arte começa no olhar diferencial sobre a realidade, antes mesmo de qualquer produção; não é necessário que alguém seja um profissional da saúde para se realizar com alguém que encarna em si o cuidado pelo outro.
Colocar o que se é em cada coisa que se faz permite uma boa dose de realização apesar das limitações em ser si mesmo impostas pelo mundo. Realização parcial, mas que tem em mente as possibilidades que estão na esfera do sonho, algo que leva a ir adiante. Quem assim não procede pode tentar realizar o sonho à força, e por isso, às custas dos outros, do mundo, desconfigurando-se, perdendo-se de si.
Quem, na impossibilidade se ser quem se é, tentar ser um outro ou fugir de si também cairá no mesmo desespero, pois ninguém pode livrar-se de si. A sina de cada um é suportar o peso do próprio ser. O mundo é um moinho, mas se o sonho se tritura como trigo, torna-se farinha, matéria base para o alimento que é a vida. Se o sonho não encontra o mundo nunca se torna realidade.