Marcos não tem relatos da infância de Jesus. Por isso, busca narrar alguns encontros dele com seu povo e sua família. No entanto, para aqueles que melhor O conheciam, Jesus era visto como um homem a mais, um galileu a mais do povo. Seus conterrâneos estavam tão seguros de que Ele era uma “pessoa normal”, que não podiam aceitar Seu modo original de ser. Eram seus companheiros de infância, tinham brincado juntos, trabalhado com Ele, sabiam perfeitamente quem Ele era. “Enquadraram-no” numa família, requisito indispensável, naquela época, para ser alguém. Até esse momento não haviam descoberto n’Ele nada fora do “normal”. Como não esperassem nada extraordinário, de onde Ele tirava tanta sabedoria?
O relato deste domingo é surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente pelos seus parentes e familiares. É a primeira vez que Ele experimenta uma rejeição coletiva, não dos dirigentes religiosos, mas de sua comunidade familiar, com quem convivera tanto tempo. Jesus se sente “desprezado”: os seus não o aceitam como portador da mensagem profética de Deus. Por isso, fecham-se em suas ideias preconcebidas a respeito do seu vizinho Jesus e resistem a abrir-se à novidade revolucionária de sua mensagem e ao mistério que se revela em sua pessoa.
Porque estavam acostumados a ouvir sempre o mesmo, rejeitam-no por ensinar “coisas novas”. Mas Jesus não se deixou domesticar e nem se acomodou às expectativas de seus conterrâneos.
Sua vida desconcertou a todos; seu modo de falar, seus critérios, seu compromisso em favor da vida, sua liberdade de espírito suscitou um espanto em todos. Sua presença despertou perguntas, dúvidas e até discussões. Quem será Ele? Será o Messias? Ou não será? Como explicar sua vida?
Porque, “sendo um entre tantos”, atuava, pensava e vivia um estilo único que o diferenciava de todos?
Sua postura de mestre e sua atuação desencadearam no seu povo uma crise, ou seja, romperam com a “normalidade doentia” das pessoas e se revelou imprevisível e desconcertante.
Na realidade, a reação dos familiares e parentes de Jesus é expressão da mesma reação que surge em todos nós quando, diante de alguém que se revela original, com um novo modo de ser e viver, manifestamos suspeitas, dúvidas, indiferença… O ser humano, em todos os tempos, tende a instalar-se, acomodando-se facilmente ao conhecido e se deixando levar pela rotina que evita sobressaltos; isso lhe confere uma certa sensação de segurança e tranquilidade: “para quê e por quê mudar…?”
E isso ocorre também com suas idéias, crenças, visões…
Habituado a ver a realidade a partir de uma determinada perspectiva, custa-lhe abrir-se a outras percepções, novas ou desconhecidas. Tem medo de ser diferente e reage com indiferença frente àqueles que são diferentes. E a indiferença mata.
Prefere a vulgaridade de ser como todo mundo à originalidade de ser diferente; prefere a monotonia de ser como todos e passar desapercebido na multidão, sem chamar a atenção por ser distinto a todos, sendo ao mesmo tempo, como todos.
Podemos, então, afirmar que o mais anti-evangélico será sempre uma pessoa, um grupo ou uma instituição instalada em suas ideias, posturas normóticas, preconceituosas, intolerantes…
Todos sabemos que isso constitui um mecanismo de defesa através da qual a pessoa busca proteger-se frente àquilo que poderia questioná-la ou trata de desqualificar a alguém diante de quem se sentiria inferi-or. Aqui aparece claro como a desqualificação do outro esconde medo ao diferente ou, simplesmente, ao novo, e algum sentimento oculto de inferioridade.
O filósofo Gabriel Marcel escreveu que “a indiferença é o grau mais baixo da liberdade” e o Pastor negro, Martin Luther king Jr, concordava com isso, ao dizer que se assustava mais com a indiferenças dos bons do que com as atitudes dos maus. De fato, ele tinha razão.
Se, por um lado ela é “a maneira mais polida de desprezar alguém” (Mario Quintana), a indiferença, em relação ao outro, é terreno fértil para alimentar o ego, levando-o à cobiça e à inveja.
Não admira o semelhante a não ser para desconstruir ou destruir a sua imagem.
De fato, a indiferença é como uma praga no jardim, vai se espalhando e contaminando e pode revelar, em sua raiz, uma insegurança estonteante em relação ao outro. Psicologicamente, diríamos que a indiferença é um mecanismo de defesa, é negação. Na negação do outro se escondem sentimentos de auto-destruição e um deles é a inveja. Quem cultiva a indiferença, facilmente sente-se alegre ao saber que o outro está numa pior. Nietzsche afirma que não saber voar é a qualidade dos indiferentes que, cada vez menos, enxergam aqueles voam alto e, se os enxergam, é a partir de uma ótica corrompida pela forma ofuscada de ver a vida. Jesus foi aquele que começou a voar alto e sua comunidade tentou cortar suas asas.
Também para nós hoje continua sendo difícil crer n’Aquele que simplesmente se revela “como um de nós”. Não é fácil reconhecer a passagem de Deus por nossa vida, especialmente quando essa passagem se reveste de “roupagem comum”; às vezes, gostaríamos que Deus se manifestasse de maneiras espetaculares, mas o enviado d’Ele, seu próprio Filho, come em nossas mesas, caminhas nossos passos e veste nossas roupas. Rejeitamos, quase que por instinto, a revelação de um Jesus muito humano e que não esteja de acordo com o que aprendemos desde pequenos. Acostumados a ouvir sempre o mesmo, se alguém diz algo diferente, mesmo que esteja mais de acordo com o Evangelho, rejeitamos de imediato.
Estamos seguros de que “tudo o que não corresponde ao sabido, ao esperado, não pode vir de Deus”. Em outras palavras, temos medo do Jesus humano, porque Ele coloca em questão nossa segurança, nosso estilo de vida e nossa vivência religiosa.
Entrar no caminho do seguimento de Jesus implica estar desapegado de todas as falsas imagens que podemos fazer sobre Ele. Sempre que nos fechamos em ideias fixas sobre Jesus, estamos nos preparando para o escândalo.
O Jesus do Evangelho nunca se apresenta duas vezes com o mesmo rosto. Se O buscarmos de verdade, descobri-Lo-emos sempre diferente e desconcertante. Se esperamos encontrar um “Jesus domesticado”, nos enganamos a nós mesmos, aceitando o ídolo que já nos é familiar. A consequência é uma vida cristã atrofiada e pesada, centrada na doutrina, na lei, na moral, e não no seguimento d’Aquele que, na “normalidade da vida”, deixou trans-parecer o extraordinário Amor do Pai.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: Marcos não narra este episódio em Nazaré para satisfazer a curiosidade de seus leitores, mas para advertir às comunidades cristãs que Jesus pode ser rejeitado justamente por aqueles que acreditam conhece-Lo melhor: aqueles que se fecham em suas ideias pré-concebidas, sem abrir-se à novidade de sua mensagem e nem ao mistério de sua pessoa.
– Esta era a preocupação de Paulo: “Não apagueis o Espírito, não desprezeis o dom de Profecia, mas examinai tudo e ficai só com o que é bom” (1Tes. 5,19-21). Nós cristãos deste tempo pós-moderno estamos precisando alimentar esta atitude. Estamos vivendo demasiado indiferentes frente à novidade revolucionária da mensagem de Jesus. Com o peso do legalismo, do moralismo, do ritualismo… estamos correndo o risco de apagar seu Espírito e desprezar sua Profecia.
– Rezar sua presença cristã no cotidiano da vida: faz diferença? Presença inspiradora e provocativa? Ou presença acomodada, sem deixar-se interpelar pelo modo original de ser e viver de Jesus?…
Pe. Adroaldo Palaoro sj