Quantas coisas somos chamados a reaprender nestes dias! A vida também é isso: transformações, ciclos de luto, despojamento até à nudez, inflexões, demoras, viragens que recebemos como um choque e, não o esqueçamos, o horizonte dos nossos reflorescimentos. A vida também é esse apelo, que nos pode chegar através das formas mais dolorosas ou paradoxais, para que a escutemos melhor e a escutemos até ao fim, como provavelmente não o havíamos feito ainda. Porque a vida é o seu parto interminável, que também é o nosso; é este incessante modelar do inacabado, que a nossa gestação, a par da gestação do mundo, significam; é, em certos momentos, a desilusão por ser só isto e, em outras ocasiões, a louca garantia (e o adjetivo ‘louca’, para esta proposição, foi São Paulo que o inventou) de que não pode ser só isto.
Existe aquele provérbio “Fazer boa cara a jogo mau”, com uma conotação nem sempre positiva, é verdade, pois pode representar uma prática de escapismo em relação ao real, uma dificuldade em se confrontar, cara a cara, com os seus pontos críticos, refugiando-se numa estratégia de alheamento ou de rodeio dos problemas. Mas, neste caso, sugiro para o provérbio um sentido noutra linha: fazer boa cara seria aqui esforçar-se serenamente para interpretar o que está a acontecer. Todo o apocalipse é uma revelação. Esse é, aliás, o sentido do termo grego apokálypsis, que devemos entender (e racionalizar) não como uma enigmática catástrofe ou um castigo mas literalmente como “o retirar de um véu”. Se, de uma forma tão violenta como aquela que o presente histórico vive, o véu que ocultava a nossa visão foi retirado, o que é que vemos?
Penso que ficam a descoberto três coisas. A primeira é aquela expressa pelos cientistas, que nos recordam que o número das epidemias cresceu e crescerá, porque os nossos modelos de desenvolvimento não têm em conta o equilíbrio dos ecossistemas nem o respeito pela casa comum. A nossa missão é a de apascentar em vez de explorar e possuir a qualquer custo. Temos atuado como se estivéssemos sozinhos no planeta e esquecemo-nos de que partilhamos, com as outras criaturas, ambientes, potencialidades e também… vírus. Uma palavra urgente para o século XXI aprofundar é ‘conexão’. A segunda coisa é que os nossos estilos de vida, no contexto deste mundo globalizado, precisam de conversão. Construímos sociedades movidas pelo dogma do utilitarismo, que operam como mercados massificados e exibem um desinvestimento dramático no humano (vítima frequente da exclusão, da indiferença e do descarte). A corrida que nos impomos é produzir mais para consumir mais. E, com isto, desaprendemos o essencial da vida. Ora, precisamos de uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, de visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana nas suas diversas dimensões. Nestas semanas, por exemplo, o heroico empenho de tantos profissionais (a começar pelos do campo da saúde, mas também todos os que asseguram o funcionamento da sociedade nesta emergência), a solidariedade dos inúmeros voluntários e o sentido de responsabilidade que nos é conjuntamente pedido talvez seja o arranque de um tempo novo. Embora, como escreveu Camus, o bacilo da peste pode chegar e ir-se embora sem que o coração do homem se modifique. A terceira coisa é que não nos chega agir pelo medo de morrer ou pelo terror do que aí vem. Precisamos, sim, de relançar a nossa aliança com a vida. Precisamos de apostas de confiança neste dom incalculável que a vida significa. Por isso, não caiamos na armadilha de pensar que o azul do céu é uma ficção enganadora ou que a primavera não passa de uma mentira. Há uma verdade na beleza do mundo que somos chamados a hospedar.
Dom José Tolentino Mendonça | iMissio