Ser filho de Deus é condição que remete a um poder fundamental, com força para qualificar todas as formas de se exercer responsabilidades. Esse poder relaciona-se à capacidade humana de perceber a vida como dom mais precioso do Criador. Compreensão que deve se alicerçar na consciência de que todos são amados por Deus. Desconhecer ou relativizar esse entendimento produz incompetência, principalmente nos muitos processos de gestão e, não raramente, compromete a condução da vida, em seus contextos sociopolíticos, por manipulação interesseira, “excessos” e mesquinhez.
Sabe-se muito bem que uma casa com alicerces comprometidos ganha rachaduras e se torna ameaça para seus habitantes. Do mesmo modo, pessoas sem o devido alicerce, por ignorarem o real valor da própria vida e da existência dos outros, tornam-se frágeis e pouco contribuem para o bem-estar da coletividade. Urge-se, portanto, no horizonte de grandes reformas necessárias à vida social, relacionadas à prática do poder, dedicar-se à condição individual que permita compreender melhor o poder que é próprio de cada um – ser amado por Deus.
Todos devem cultivar no coração o real sentido da existência humana, evitando reducionismos. É comprometedor e muito comum na sociedade, por exemplo, acreditar que indivíduos são apenas peças da engrenagem social. Isso alimenta a convicção de que pessoas podem ser descartadas, substituídas. Um entendimento que se desdobra em atitudes mesquinhas, alimentando ganâncias e idolatrias como a do dinheiro, que distorcem tudo, inclusive a compreensão sobre o valor de cada pessoa. O resultado dessa perda de sentido relacionada à própria existência, que se desdobra na desconsideração do outro, revela-se nas diferentes formas de violência, particularmente na corrupção. E o mundo torna-se, cada vez mais, regido pela lei do “salve-se quem puder”.
A reversão desse cenário exige que todos reconheçam: as raízes da sociabilidade humana se inscrevem no horizonte do amor de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo. Ignorar essa referência configura uma orfandade que faz crescer a delinquência. Hoje, muitos aparentam agir orientados por inquestionável racionalidade, apresentam-se de modo a impressionar positivamente, mas, quando observados de perto, são desmascarados. Revelam-se agentes que contribuem para fazer da sociedade contemporânea lugar marcado por vergonhosas desigualdades, que aceleram os passos da humanidade rumo ao caos. Reconhecer que a sociabilidade humana está inscrita no horizonte do amor de Deus é caminho para livrá-la das exorbitâncias dos que acumulam muito poder, mas não possuem a requerida qualidade humanística, emocional e espiritual para exercê-lo adequadamente.
Ora, cada pessoa é imagem e semelhança de Deus, o Criador e Senhor Único. Isso significa admitir e compreender que o ser humano tem uma constituição intrínseca de transcendência. Sem reconhecê-la, age-se guiado simplesmente por um instinto animal, nos parâmetros da irracionalidade e da insensibilidade social. A falta de lucidez sobre a sacralidade do ser humano é fenômeno muito comum, inclusive entre vários cristãos. Muitos não se envergonham e não se incomodam diante das injustiças na sociedade. Indiferentes, não se engajam para mudar cenários lamentáveis. Tornam-se, pois, corresponsáveis pelas injustiças cometidas, pois, mesmo professando a fé, não agem, com rapidez e eficácia, para minimizar as dores dos pobres e sofredores.
Quem não reconhece a dimensão transcendente da vida corre o risco de ser engolido pela ambição sem limites, substituindo o “ser” pelo “ter”. Passa a buscar, de modo insaciável, dinheiro e poder. Hoje, tem muita gente “podendo demais”, adoecida e submersa na delinquência, exatamente por dedicar sua vida à acumulação de bens, sem limites. A atitude capaz de corrigir esses desequilíbrios do poder e a falta de sentido para a vida é fazer-se discípulo e discípula de Jesus: compreender a si mesmo, por profunda transformação interior, como servidor, lembrado sempre da palavra do Mestre que garante ser o maior aquele que serve mais e serve a todos.
As reformas urgentes para a sociedade, em muitos âmbitos, passam, desse modo, pela compreensão de que uma virada civilizatória precisa acontecer a partir do poder que se sustenta em qualificada humanização – uma nova modulação dos poderes na sociedade.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)