Todos somos criaturas procedentes das entranhas d’Aquele que é Plenitude e Presença. Filhos e filhas de Deus, gerados pelos nossos pais, desde toda a Eternidade estamos em seu pensamento e em seu coração; daí nosso desejo de eternidade. Na Eternidade não há passado nem futuro, só Presente, aqui e agora.
Ao nascer, começamos a existir, mas já estávamos na mente e no coração de Deus; existir é ser no tempo; ao morrer, deixamos de existir, mas não deixamos de ser. Usando uma expressão poética podemos dizer que “somos suspiros de amor de Deus” e, tal como as ondas do mar que beijam a praia e retornam ao oceano que as constitui, assim nós também retornaremos à nossa Fonte original; seremos “aspirados” para dentro do coração oceânico do Deus Pai/Mãe.
Isso celebramos cada 2 de novembro: a esperança de que aqueles que morreram, já vivem ressuscitados para a Vida de Deus. No “Dia de Finados”, nós cristãos recordamos (visitamos de novo com o coração), na oração e no afeto, aqueles(as) que amamos e que já deixaram este mundo. Apesar de sua ausência física, pela fé sabemos que a morte não tem nunca a última palavra. De fato, a morte é a passagem para a Vida, para sempre; a Vida que não terá fim, pois nosso Deus não é Deus de mortos, mas de vivos. Porque para Deus, todos vivem.
Celebrar e recordar os falecidos a cada 02 de novembro e cada dia na eucaristia nos anima a viver a fé na Ressurreição e nos encher de esperança. A experiência cristã da morte parte de uma revelação básica: Deus não quer a morte, mas a vida, a vida plena para toda pessoa humana. “Tu perdoas a todos, porque são teus, Senhor, amigo da vida” (Sab. 11,26). Somos convidados à confiança em Deus, renunciando toda pretensão de querer controlar nossa existência; somos movidos a reconhecer que os momentos cruciais de nossa vida foram “dom de Deus”, mais que planificada construção nossa.
Morrer é o processo pelo qual nos “reintegramos” na Vida que sempre fomos.
Somos viventes mortais e honramos os nossos mortos, aqueles cuja recordação ainda nos afeta. Mas todos os mortos, grandes e pequenos, santos e pecadores, são nossos, somos de todos eles, pois a mesma vida nos une na morte, e a mesma morte nos une na vida. O que eles(elas) foram na vida agora faz parte do que somos, e nossa vida deve restaurar e completar o que eles não alcançaram viver. Nisso consiste honrar os mortos: em dar culto à vida, em cultivá-la, cuidá-la, curá-la neles e em nós.
Celebrar o dia de Finados é um ato de justiça para com os mortos. Os mortos também tem direitos e é bom que se reconheça isso. Vivemos uma cultura que extingue o passado, obscurece o futuro e fica preso a um presente emocional vazio. Os mortos têm direito a que lhes agradeçamos sua vida e a marca original que nos deixaram.
Celebrar e recordar aqueles que nos precederam é negar à morte a última palavra, é afirmar que a Vida é a palavra definitiva; recordar aqueles com os quais convivemos nos faz viver a partir das raízes humanas, ancorados em nossa existência cotidiana.
Não querer ver a morte de frente, ignorá-la, apagá-la de nossa vida, fazê-la invisível…, é perder humanidade, é um autoengano sobre a condição humana frágil, banaliza-se a mesma vida que acaba não valendo nada. Quando a morte é “consumida” diariamente nos noticiários, só se ativam emotividades instantâneas que não levam a nada, ou a uma resignação estéril diante do que acontece.
Pensamos que a morte é o contrário da vida e essa lógica é falsa. A vida é como uma moeda que tem duas faces: uma é o nascimento, a outra é a morte. Entre as duas faces está a moeda, que é o importante. É a vida que devemos dar valor, não seus limites.
Diante da necessidade inata de recordar nossos antepassados devemos aproveitá-la para encontrar segurança e sentido em nosso próprio mundo. A consciência de que somos o que somos, graças aos seres humanos que nos precederam, é uma realidade inspiradora para o nosso viver. Recordar os nossos familiares falecidos e agradecer-lhes o que fizeram por nós nos ajudará a fazer o mesmo por aqueles que caminham conosco.
Entrar em sintonia com os seres queridos que morreram nos impulsiona a viver com maior intensidade a vida que ainda temos nas nossas mãos. Todo o humano que eles nos transmitiram devemos potenciá-lo em nós para que o mundo vá se humanizando. Pelos mortos já não podemos fazer nada, mas sua recordação nos impulsiona para aqueles que vivem junto a nós. O maior elogio que se pode dizer de um ser humano é que, quando partiu, deixou o mundo um pouquinho melhor que quando chegou a ele.
O grande teólogo Karl Rahner entendia a morte em chave de generosidade. Morrer, escreveu ele, é “dar lugar” aos que virão depois, é nosso último exercício de amor, responsabilidade e humildade. É, inclusive, nosso derradeiro exercício de liberdade. Precisamos morrer, não só para que outros vivam, abrindo, com nossa morte, um espaço para eles, mas também para que valorizemos a vida como presente recebido, que vamos legando aos que vem, constituindo, assim, uma corrente de vida sempre mais expansiva.
Todos morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-moderna líquida” a morte se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram com os outros, tem medo de morrer.
Os que aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como a jornada cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.
Dia de Finados é ocasião privilegiada para confrontar a morte, como fazemos com outros medos. Devemos contemplar nosso fim último, familiarizar-nos com ele, aprofundá-lo e analisá-lo, conversar com ele e descartar as aterrorizadoras distorções infantis sobre a morte. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nosso breve período de tempo sob a luz -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Morre-se no instante da morte, como morremos ao longo da vida. Este é o caminho normal de morrer. A presença da morte na existência não se veste de luto, mas de seriedade e irreversibilidade nas decisões. Uma vida pensada sem morte perde-se, no final, na total irresponsabilidade.
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”
– “Fazer memória” das pessoas que viveram intensamente e deixaram “marcas” em sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj