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EVANGELIZAR NOSSA INTERIORIDADE

Os conflitos são constantes no caminho da fidelidade ao Evangelho: conflitos externos que surgem a partir da presença inspiradora e provocativa dos(as) seguidores(as) de Jesus; conflitos internos que afloram quando a mensagem evangélica ressoa na interioridade de cada um, desvelando seus contraditórios impulsos, tendências, dinamismos, forças…

 

O ser humano vive tencionado entre dois polos: entre luz e escuridão, céu e terra, fragmentação e unidade, espírito e instinto, solidão e vida comum, medo e desejo, amor e ódio, razão e sentimento, sagrado e profano…, enfim, entre animalidade e humanidade.

 

Não se trata de alimentar uma luta entre esses dois impulsos, como um combate entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações”.

 

O combate dualístico desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo…, esvaziando a pessoa de toda densidade humana.

 

A questão de fundo é saber qual dos dois dinamismos nós alimentamos; é aqui que entra a liberdade (ordenada) para deixar-nos conduzir pelo Espírito. O centro é o Espírito. Só quando dizemos sim a esta tensão básica de nossa vida é que conseguimos superar a divisão interna.

 

Viver uma “vida segundo o Espírito” significa, antes de tudo, chegar à compreensão e integração das polarizações internas, dos dinamismos opostos, dos movimentos contraditórios… que nos mantêm “despertos” e que dão calor e sabor à nossa existência.

 

É próprio do Espírito, reunir, integrar, conciliar, pacificar, conduzir-nos a um “lugar interior”, a um centro de calma, onde tudo tem seu lugar, onde tudo encontra seu espaço. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida.  A atitude fundamental é a de sermos dóceis para nos deixar conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos.

 

À luz do evangelho deste domingo, vamos considerar os “conflitos internos”. E a questão primeira que surge é esta: como integrar, pacificar, harmonizar… os “animais interiores”, para que o seguimento de Jesus Cristo não termine num combate espiritual que desgasta, tornando pesada a vivência cristã e levando ao sentimento de impotência e desânimo?

 

Sob o impulso do Espírito, somos chamados a conhecer, reconhecer, nomear e integrar os animais que nos habitam. E caminhar fraternalmente com eles. Cada um deles representa os instintos, impulsos, paixões, fragilidades, sensualidade, sentimentos… que, quando não pacificados e integrados, criam uma desarmonia interior.

 

Somos como a “arca de Noé”, no grande Oceano da vida, carregando em nosso interior todos os animais, com seus instintos selvagens e primitivos; e o maior desafio é, justamente, a harmonia e a convivência, onde cada um deles tem sua importância, seu papel sagrado e revelador da nossa identidade humana. São eles que nos facilitarão o acesso às nossas riquezas interiores.

 

Algumas vezes agimos como uma cobra, ficamos ariscos e escondidos como uma onça, rugimos como um leão ou atacamos como um cão feroz. Outras vezes, até agimos igual a animais ruminantes que mastigam continuamente os rancores e mágoas do passado.

 

Eles não cessam de ladrar enquanto não lhes damos atenção. É preciso, antes de tudo, pacificar nossos animais interiores. Trata-se de conhecê-los, aprender a linguagem deles, fazer amizade com eles para que eles não nos destruam por dentro.

 

Faz parte da maturidade e crescimento pessoal encontrar e entender, em cada um de nós, a mensagem e o desafio de animais interiores como a pomba, o cachorro, o corvo, a serpente, a raposa, a perdiz, o lagarto, o falcão, o lobo, o leão… Cada animal deve ser verbalizado, integrado harmoniosamente no tempo certo e no lugar adequado. Ao fazer isso, descobriremos as diferentes dimensões da ecologia espiritual, paradisíaca e harmônica, para bem viver a maravilha da vida plena e em abundância.

 

Quando todas as energias animais são ordenadas, elas colaboram para o conhecimento pessoal, o refinamento da identidade e a busca da autenticidade, elas são fonte interior de sabedoria e de desfrute espiritual. Então, os animais pacificados  irão nos conduzir ao mais profundo e nos mostrar onde o tesouro está escondido, e ajudam-nos a desenterrá-lo. Aqui está o lado “humanizante” da vida.

 

Fomos forçados, durante nossa formação cristã, a viver uma espiritualidade que nos ensinou a reprimir e a manter presos todos os animais  na gruta interior e a levantar junto dela um edifício de “grandes ideais”. Lutar contra os animais interiores é permanecer na superfície de si mesmo e não ter acesso às reservas de riqueza do próprio coração.

 

Tal vigilância e suspeita nos levaram a viver constantemente com medo de que os animais pudessem fugir e nos devorar. Fomos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com os eles. Quanto mais os amarramos, tanto mais perigosos eles se tornam; eles nos atacam por dentro, tirando a disposição, o ânimo de viver.

 

Com isso nos excluímos do prazer de viver, porque tudo é reprimido e nossa animalidade é violentada. E onde está o nosso medo pode estar também o nosso tesouro enterrado. “Não tenhais medo deles. Não há nada de oculto que não venha a ser revelado, e nada de escondido que não venha a ser conhecido” (Mt 10,26).

 

Sem a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto de Deus. Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens”  tem muita força. Quando os prendemos, gera um desgaste muito grande e fica nos faltando a sua força de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros.

 

Nosso compromisso deveria ser a de travar um diálogo amoroso com os animais dentro de nós. Então tornar-se-á realidade o que o profeta Isaías prometeu: “O cordeiro e o leão andarão juntos, e a pantera se deitará com o cabrito…” (Is. 11,6ss). O compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade. Vencido o medo, nós nos tornaremos autênticos, criativos e audazes seguidores de Jesus.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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