A recomendação, tão necessária, para que fiquemos em casa é, como sabemos, essencial para o trabalho daqueles que não podem ficar em casa. Mas ficar em casa tem, de um lado, uma dimensão desoladora. É que fomos feitos para o convívio, como disse um antigo filósofo grego. E mais, nós nos formamos no convívio. Então é compreensível que essa recomendação nos incomode. Mas, vejam, isso não é tudo. E até pensando bem, de uns tempos para cá, temos, metaforicamente, permanecido em casa na medida que, cada vez mais, convivemos com quem pensa ou sente como nós. Circulamos em grupos resistentes a quaisquer interações com o dessemelhante, restringimos nossa experiência espacial a determinados lugares da cidade, e usamos o que cremos como uma forma de cola com os outros. Assim, talvez o que nos incomode em ficar em casa seja a restrição, a suspensão do que acreditamos ser a nossa liberdade, não tanto de conviver, mas de exercer nossa vontade, já que entendemos por direito qualquer coisa que queiramos fazer. Daí nossa inquietação.
Mas ficamos, mesmo contrariados, em casa, pois há uma ameaça. Mas não é fácil já que o receio, mesmo justificado, não é suficiente. Então nos deparamos com uma das faces mais duras da miséria de nossos tempos, a nossa pouca habilidade, os nossos escassos recursos para convivermos com nós mesmos. Somos hoje, muitas vezes, animais distraídos e quando a distração escasseia, como agora, é inevitável um certo mal estar. A convivência com nós mesmos, esse território tão próximo, tão distante, sempre foi mediada, ao longo do tempo, por histórias, sejam as vindas dos mitos, da poesia, da literatura de uma forma geral e das religiões. Contávamos com relatos sobre os instantes e as circunstâncias mais básicas de nossas vidas: o amor, a dor, a morte, a esperança, a diferença entre o bem e o mal, a coragem e assim por diante. Esses relatos procuravam dar um rosto humano ao enigma de que somos feitos. Relegados a um canto, desaparecidos dos espaços públicos, perderam sua dimensão formativa. E perdemos nós boa parte dos nossos instrumentos para lidar com o que nós, humanos, temos de mais constitutivo, esse enigma que somos. Oxalá, involuntariamente confinados, sejamos capazes de voltar nossa atenção para essas fontes de sabedoria que indicam, ainda que de forma sempre incompleta, os caminhos que nos conduzem à intimidade da existência.
Ricardo Fenati
Centro Loyola