Nos últimos tempos, temos o incômodo sentimento de que as expressões públicas de intolerância só aumentam. Muitas, lamentavelmente, alimentadas por lideranças políticas, religiosas e midiáticas, muito especialmente nestes tempos de campanha eleitoral.
É fato que nunca vivemos só de coerências, convergências, certezas, similaridades, ordem, completudes, plenitudes, luzes. A vida é muito complexa. Lidamos o tempo todo conosco mesmos e com os outros em meio às divergências, às dúvidas, às diferenças, ao caos, às incompletudes, às contradições, às implenitudes, às sombras…
Por isso, um grande desafio para o ser humano é existir e coexistir: escolher e se apegar no que representa um bem para si e para os outros. Ninguém vive sozinho.
Assim emerge a ética – a responsabilidade que cada um tem por suas atitudes e pelas consequências delas para si próprio e para o mundo. Por isso a tolerância, a atitude de aceitação e respeito ao ser humano que é diferente de nós, que não se revela igual a nós, torna-se uma ética.
Para uma coexistência, não é obrigação viver a mesma vida, ter as mesmas posturas, a mesma visão de mundo, os mesmos símbolos, as mesmas crenças, a mesma ideologia, a mesma opinião. Divergência, discordância, são componentes de uma atitude tolerante, com respeito ao outro, tendo consciência das diferenças, que acabam por compor o incrível mosaico que é o mundo.
A atitude de tolerância não é “aguentar”, “suportar”, não conseguir evitar o outro diferente, mas é a aceitação do direito que cada um tem de ser aquilo que é e de continuar a ser.
A regra de ouro do cristianismo reflete bem este direito: “Não faça ao Outro aquilo que você não quer que façam a você” (Mateus 7.12). Ou “Faça ao Outro o que você quer que façam a você”. Esta perspectiva está bem presente em muitas outras religiões.
Alguém pode questionar: Então, tudo é relativo? Cada um vive como quer e faz o que quer? Qualquer postura deve ser aceita? Não. Por isso temos regras de coexistência que passam pelos direitos e deveres, fundamentalmente no direito da vida humana e da terra, com leis para se manter a vida.
É preciso agir coletivamente para se garantir, com tolerância, o direito de ser e existir. Um assassino tem de ser punido por impedir a vida. Corruptos precisam responder pelo uso abusivo e ilegal de recursos que garantem a vida. Torturadores têm que ser punidos por não tratar quem está preso como ser humano. Racistas e sexistas têm que ser punidos por tratarem um ser humano igual como inferior.
Quem abusa da liberdade de expressão para ofender e violentar com palavras e imagens aquele não aceita como igual, ou de quem discorda, deve ser punido.
A intolerância, ao contrário, é a negação do direito do diferente existir. É enxergar a vida somente por “um lado”. Na verdade é uma cegueira: decreta-se que o certo, a verdade, o que vale, o que deve ser é um único modo de vida.
Daí a tentação de uma única postura, uma única visão de mundo, os únicos símbolos, uma única crença, uma única opinião. Quem é intolerante quer impor um pensamento único – aquele com o qual se identifica – chegando até mesmo a usar da força física, dos vários tipos de violência, para que todos assumam a sua perspectiva.
A intolerância se concretiza em preconceitos, discriminação e ódio de diferentes formas: racismo (contra negros), machismo/sexismo (contra mulheres), classismo (contra pobres), xenofobismo (contra estrangeiros e populações de regiões inferiorizadas), LGBTfobismo (contra pessoas LGBTX), etaísmo (conta determinadas idades), contra expressões religiosas, contra opções políticas.
Estas atitudes sociais podem se manifestar em ações coletivas particularizadas como o bullying, segregações e exclusões em escolas, espaços de trabalho, vizinhanças.
Podem também se reverter em ações coletivas organizadas como atentados, assassinatos, “limpezas locais”, como ações da Ku Klux Klan, nos EUA, dos skinheads, em várias partes do mundo, do Estado Islâmico, das milícias (inclusive religiosas) e de grupos de linchamentos.
Estas manifestações de intolerância podem também ser assumidas por governantes e se reverter em políticas, com uso da lei, como guerras, regimes de separação, genocídios, limpezas étnicas, perseguições.
Temos como exemplos o apartheid na África do Sul, o sistema de castas na Índia, a dizimação das populações indígenas nas Américas, o holocausto imposto pelo Nazismo, a eliminação do povo bósnio e da juventude negra das periferias do Brasil, entre tantos outros.
Daí a discussão entre oportunismos que se estabelecem entre a legalidade e a legitimidade. Nem tudo o que é imposto como lei pode ser considerado legitimamente humano.
Intolerância não tem idade, não tem gênero, não tem cor, não tem classe social, não tem nacionalidade, não é sinônimo de conservadorismo, não é sinônimo de “direita”.
Intolerância é coisa de gente que não quer lidar com as diferenças e o direito de ser e existir que é de todos que habitam o mundo. Reconhecer a própria intolerância (deixar de se ver como o centro do universo e tirar a venda dos olhos para o grande mosaico mundial) é grande passo de superação.
Fazer política de forma respeitosa e digna é outro. Qual é o meu-seu-nosso próximo passo?
Magali do Nascimento Cunha
Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação
Publicado no site Amai-vos