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Desfazendo o que não é amizade

Talvez sejamos amigos de alguém, num primeiro momento, por algum tipo de afinidade que se sente pelo outro que se conhece. Às vezes isso não ocorre de imediato, mas se dê justamente à medida que o conhecimento se aprofunda. Há quem gostamos à primeira vista e outros de quem nos antipatizamos, mas  que nos surpreendem mais adiante, embora com alguns a aversão se confirme.

Essa atração ou repulsa pode se dar pelo reconhecimento de que há algo comum a ambos. Pode-se odiar no outro aquilo que se rejeita em si ou se criar algum tipo de compaixão por compartilhar da mesma mazela. Ou então, ver características boas em comum com o outro pode surtir em admiração ou, talvez, rivalidade. E quando há algo que se gostaria de ter e que o outro possui em si, atração ou inveja são sentimentos passíveis de acontecer.

A amizade, no geral, começa pela admiração que cria simpatia, essa conexão afetiva que faz com que um se sinta implicado pela vida e sentimentos do outro. No seu desenvolvimento, a amizade encontra seu maior desafio quando se depara com os limites e defeitos alheios. Aí entra a escolha pelo amigo, quando se dedica amor apesar daquilo que não se gosta e dos erros que possa cometer. Nesse momento, apesar das incompatibilidades, acolhe-se o outro na sua totalidade.

A amizade madura implica necessariamente no reconhecimento das diferenças. Afinal, relação não é simbiose. Ao contrário, ela só existe se houver diferença, quando um não é extensão do outro. Quando o amor é autêntico, acolhe-se o outro na (e apesar da) sua diferença. Ainda assim, há um limite à convivência. Quando algo ou alguém lhe despersonaliza e dissolve sua singularidade, como em relacionamentos impositivos e desrespeitosos, a individualidade é ameaçada e, desse modo, já não há relação possível.

Às vezes, por amar alguém, permanecemos junto delas, suportando coisas que nos desagradam. Contudo, quando essa pessoa nos fere ou agride (seja física, moral ou psicologicamente), está pondo em risco nossa integridade, a inteireza do que somos, e é com isso que nos relacionamos. Sendo assim, distanciar de alguém assim é condição para que alguma relação ainda seja possível, ainda que seja a mera cordialidade social.

O ponto central não está na discordância, mas no que decorre disso. Nessas eleições, muita gente se deu conta da incompatibilidade de vida, mais que de pensamento, com alguns que eram considerados amigos. Como gays podem manter amizade com quem sustenta argumentos homofóbicos ou mulher com quem usa de misoginia? As amizades desfeitas em todo o Brasil não são simplesmente por ideias políticas, mas por atingirem questões centrais e estruturais daquilo que as pessoas são. Ainda que se ame, há de se romper a relação com quem não respeita o que lhe for mais íntimo.

Desse modo, há de se considerar até que ponto uma amizade lhe faz mal. Há casos que basta apenas desconectar-se nas redes sociais de quem as postagens cujo conteúdo seja ofensivo, porque ainda se tem algum tipo de gratidão ou afeto por uma história em comum. Outras vezes, cabe manter relações superficiais e cordiais para que haja um clima de trabalho possível. Outras vezes, urge uma boa conversa ao vivo para expor que o que é dito é algo muito ruim. De qualquer forma, não se pode ficar em silêncio diante da afronta ou acinte. É questão de integridade. Se os bons se calam, o grito dos maus reverbera mais forte. Ninguém deve apanhar calado para não ofender o amigo que bate.

Gilmar Pereira
Bacharel e licenciado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CESJF);
Bacharel em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE);
Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. 

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