O corpo humano está no centro da revelação cristã, já que se trata de algo assumido pelo mesmo Deus na Encarnação de seu Filho Jesus Cristo; Ele se faz corpo humano e habita entre nós. Este gesto divino eleva e engrandece a corporeidade humana e a resgata para sempre, já que a divindade abraça a “carne”, assumindo sua fragilidade para dentro de Si mesmo.
Deus se revela encarnando-se, assumindo um corpo que sente, que vibra, que tem prazer e que sofre, uma carne que treme, vulnerável ao frio e ao calor, à fome e à sede. Corpo que comunga com nossa mortalidade, padecendo dor, agonia e morte, sendo sepultado no ventre da terra como toda criatura.
Segundo os Evangelhos, Jesus de Nazaré foi Aquele que soube ser feliz transitando com sabedoria e amor o caminho do próprio corpo. Ele não tinha uma mentalidade dualista: sua visão do mundo não era dicotômica nem hierarquizada, nem separava entre sagrado e profano. Essa mentalidade que contaminou o cristianismo não procede d’Ele, mas de filosofias posteriores.
Jesus não se apresentou como inimigo do corpo, do prazer e da festa, nem foi um asceta como João; pelo contrário, escandalizou por sua forma festiva, prazerosa e livre de viver seu corpo e suas relações. Desfrutou de banquetes em companhia de gente excluída e marginalizada por diversas razões, e isso foi motivo de espanto. O fato de ter sido acusado de “comilão, beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” é a melhor expressão de sua liberdade relacional e sua maneira de viver reconciliado com seu corpo ao permitir-se prazeres corporais: comer, beber, dormir, descansar, desfrutar dos sentidos… a vista, o sabor, o olfato, o tato.
Nem ele nem seus discípulos guardavam o jejum, participando de casamentos, banquetes, refeições festivas com “gente de má fama”, para escândalo dos considerados “puros”.
Além disso, Jesus viveu seu corpo como um lugar para a relação sem medos nem tabus: tocou e se deixou tocar com profunda liberdade, escandalizou os seus discípulos desfrutando do contato amoroso com Maria de Betânia, que derramou sobre Ele um caríssimo perfume, num gesto de total gratuidade e marcada somente pelo desejo de compartilhar amor e gratidão. Olhou o corpo das mulheres de um modo muito diferente daquele dos seus contemporâneos; para Ele, elas nunca foram lugar de tentação ou seres inferiores dos quais não tinha nada que aprender: foram amigas, companheiras, discípulas, mestras em muitos momentos.
Empenhou-se por praticar um amor operativo e, sobretudo, centrado nos corpos enfermos, desgarrados, desnudos, famintos, encurvados, paralisados, cegos, coxos, leprosos…; além disso, deixou claro a quem quisesse escutá-lo, que isso era o fundamental para entrar no Reino: passar pela vida como tera-peuta/sanador e não como juiz que acusa; abraçar e acolher a carne sofredora dos outros e não manter uma prudente distância do corpo vulnerado de Jesus. E, se com sua vida não tivesse ficado suficientemente claro, quis, num momento solene, recordar a todos que a verdade última sobre o que é ganhar a vida ou perdê-la definitivamente está no fato como tratamos os corpos de nossos irmãos que sofrem. O amor não é algo etéreo: ou passa pelo corpo ou é apenas um bom desejo e nada mais.
Na festa de “Corpus Christi” fazemos memória deste mistério: o único recurso de que Jesus dispunha antes de ser preso e sofrer a paixão era seu próprio corpo. Não teve outra riqueza nem outro dom a nos oferecer. Esse Corpo que era sua própria vida; sentia-se abençoado em sua totalidade, sem deixar nada fora. Agradeceu por isso e fez dele um gesto definitivo: entregou-se por inteiro, sem nada reservar para si. A partir de então, torna-se um Corpo expansivo que se deixa tomar pelas nossas mãos e saborear pela nossa boca, na maior proximidade e no mais íntimo contato. De agora em diante, será nos corpos vulnerados, nos corpos que sofrem, resistem e curam, onde Ele quer permanecer expressamente presente, com uma presença imediata que não deixa lugar a dúvidas: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”.
Na festa de Corpus Christi, há um grande perigo de alimentar a devoção à presença real de Jesus na Eucaristia desvinculado da realidade de sua Encarnação, ou seja, esquecer que Ele se fez corpo, viveu intensamente seu ser corporal e comprometeu-se com os corpos desfigurados e sofredores dos outros, recriando-os e impulsionando-os a uma vida mais plena. Portanto, “Corpus Christi” é festa do corpo de Jesus e de todos os corpos. Festa do pão e do vinho, frutos da terra e da comunhão de todos os seres. A Terra é um grande organismo vivente; o universo, com suas estrelas e galáxias é um imenso corpo. Da mesma forma, cada átomo é um corpo no qual se movimenta o universo do imensamente pequeno.
Sempre foi verdade a afirmação de que “somos corpo”, e não a afirmação de que “temos corpo”; mas durante muito tempo a espiritualidade cristã esqueceu esta verdade, considerando o corpo como algo acidental ao ser humano, olhando-o com suspeita e inclusive como seu inimigo. Identificada com uma mentalidade dualista que desconecta corpo de espírito, material de espiritual, terra de céu…, a espiritualidade cristã manteve a questão do corpo um tanto exilada e silenciada.
Atualmente caímos no perigo extremo: somos somente corpo, como se o corpo fosse o único centro de atenção da vida. Na cultura pós-moderna, o corpo está se convertendo em extensão da imagem de nosso ego, ao invés de ser expressão de nossa história pessoal e de uma vida aberta à plenitude de Deus. Desconectado de sua intimidade, o corpo vive como objeto dos olhares exteriores e por isso se coisifica e se tecnifica como se fosse uma mercadoria.
“Somos corpo” em relação com tudo o que é. Somos nuvem, água, ar, terra. Carregamos todo o universo dentro de nós. Somos Terra que sente, canta, pensa, ama. Somos partículas de matéria aberta, fonte inesgotável de possibilidades. Somos corpo, somos espírito, somos alma, somos afeto, somos relação… Somos milagre.
Celebremos o Corpus Christi de outra forma; celebremos nosso corpo, tão maravilhoso e vulnenável. Cuidemos do corpo, sem torturá-lo com nossas obsessões, sem submetê-lo à escravidão de nossas modas e medos. Respeitemos como sagrado o corpo do outro, sem apropriar-nos dele. Sintamos como próprio o corpo do faminto, do excluído, do refugiado, da mulher violentada, maltratada, da criança abandonada…
É nosso corpo. É o Corpo de Jesus. É o Corpo de Deus. Celebremos, cuidemos, sejamos Corpo de Deus, epifania carnal da Ternura infinita.
Pe. Adroaldo Palaoro sj