Na Carta aos Hebreus, o autor escreve: ‘A Palavra de Deus é viva e eficaz’ (cf. Hb 3,12a). Essa breve afirmação contém as convicções básicas com as quais devemos nos colocar diante das Sagradas Escrituras e meditar. Em primeiro lugar, a Palavra de Deus é viva, não é ‘letra morta’. Ao contrário; ela nos é dirigida hoje. Nossa tarefa é, acima de tudo, permitir que a Palavra nos fale, permitir que faça de nós cada vez mais abertos e sensíveis à sua mensagem, para aprendermos a ‘arte da escuta’ da qual o filósofo Martin Buber fala. Em segundo lugar, além de ser viva, a Palavra de Deus é eficaz. Eficaz no sentido mais pleno da palavra: transformativa. Não se satisfaz em comunicar informação, intuição, sentimentos ou até mesmo experiências religiosas a nós – embora comunique tudo isto. Sua intenção é nos recriar. Assim como no princípio Deus criou o Universo por Sua Palavra onipotente, da mesma forma pretende nos recriar, nos criar para a vida eterna, pelo poder de Sua Palavra.
Com os sacramentos, as Escrituras são o principal canal pelo qual a graça de Jesus e o Espírito Santo vêm até nós e nos moldam. Penso que seja isso o que Jesus deseja nos transmitir ao dizer que suas palavras são ‘espírito e vida’. Elas infundem em nós o ser, o amor, a santidade de Deus e pouco a pouco nos transformam em novas criaturas. Pois as Escrituras são a Palavra de Deus; a Bíblia é revelação. Para nós, hoje, é claro que a Palavra de Deus não ‘caiu do céu’; ao contrário, ela foi escrita no decorrer de muitos séculos por muitos autores com claras influências de outras culturas e algumas de suas passagens foram editadas e reeditadas com o passar do tempo. Mas isso não tira nada da realidade das Escrituras como revelação. Jesus, a Palavra de Deus, veio a nós da mesma forma. Aqui, vale ler as genealogias nos evangelhos de Mateus e de Lucas. O próprio Jesus não caiu do céu. Muitas gerações se passaram, preparando Maria e José, a mãe e o pai adotivo de Jesus e, em última instância, preparando a humanidade d’Ele. Alguns dos ancestrais de Jesus não eram do povo eleito, mas gentios. É assim que Deus trabalha. Ele vem sem alarde ao mundo.
Assim, as Escrituras são a revelação de Deus em veste humana, em linguagem humana. É isso que nos permite compreendê-las. Mas, por serem Palavra de Deus, elas devem sempre ser abordadas com veneração e reverência. Algumas vezes, meu mestre de noviços no mosteiro simplesmente segurava a Bíblia junto de seu coração no tempo de leitura da Escritura, com uma atitude de profunda reverência e um belo sorriso tranqüilo. Ele havia meditado as Escrituras por muitos anos e, naquele momento, era capaz de escuta-lás ‘através das capas’ sem ter de abrir nenhuma página em particular. Você e eu ainda não chegamos lá. Mas é lindo pensar que um dia possamos ter tamanha intimidade e familiaridade com a Palavra de Deus.
Concretamente falando, como devemos ler as Escrituras? Há algum método a ser seguido que possibilitará que seu conteúdo nos penetre, converta e santifique? Eu diria que não há uma fórmula exata. Mas há uma sabedoria básica que a Igreja tem – e talvez a tradição monástica em particular – acerca da interação sagrada entre a Palavra viva e a pessoa. O nome desta abordagem – lectio divina – tem se tornado relativamente bem conhecido no decorrer dos últimos anos. É como os monges descrevem sua meditação das Escrituras. Significa ‘leitura divina’ – tanto no sentido de que o conteúdo daquilo que é lido é divino quanto no que a própria atividade é divina: o próprio Deus falando e eu O escutando, Deus agindo dentro da minha escuta de modo que eu possa captar e assimilar e de certa forma ‘tornar-me’ aquilo que estou lendo. Em geral, o termo é considerado tão rico e com tantas nuanças, que a maioria das pessoas prefere deixá-lo no original em latim.
Para começar, a lectio divina deve iniciar-se com uma oração, uma oração ao Espírito Santo, que é a luz e sabedoria de Deus. É acerca do Espírito Santo que o Credo diz: ‘Que falou pelos profetas’. Nós lhe pedimos, ao autor primário das Escrituras, que nos dê um coração dócil e sensível, a fim de nos tornar aptos a escutar exatamente aquilo que nos deseja dizer. Em seguida, simplesmente começamos a ler uma breve passagem bíblica. Lectio não é uma atividade ocasional, mas diária, então é bom haver uma continuidade entre a passagem de hoje e a de amanhã. Muitas pessoas fazem sua lectio com o texto do Evangelho da missa do dia. Isso pode ser especialmente rico a quem participa da missa diariamente e tiver a oportunidade de escutar mais tarde o mesmo texto proclamado na liturgia, que havia refletido antes. Outras pessoas escolhem um livro da Bíblia e o lêem inteiramente no decorrer de vários meses. Em ambos os casos, é importante que o texto não seja demasiado longo – nunca mais de um capítulo. A leitura é feita devagar e com uma breve pausa entre os versículos (em Florença, há um afresco maravilhoso de São Domingos fazendo lectio, com o dedo indicador nos lábios à medida que faz uma pausa para interiorizar o texto, e uma estrela sobre a cabeça, simbolizando a graça iluminadora do Espírito Santo). Não é necessário ler até o fim da passagem do Evangelho ou do capítulo. Assim que sentir sua atenção e seu coração tocados por uma frase, uma palavra, uma imagem, é um bom lugar para parar, pois o leitor está passando do ato de ler para aquilo que se chama ruminatio.
Ruminação (ou meditação) é o demorar-se tranquilamente no texto que chamou a atenção do leitor. Este demorar-se geralmente ocorre por meio de uma repetição interior pacífica da palavra ou palavras que nos ‘pegaram’. Posso garantir que qualquer pessoa que leia uma passagem das Escrituras devagar e pausadamente se experimentará atraída a determinada frase – senão na primeira leitura, certamente na segunda ou na terceira. Uma palavra em particular nos grita: ela quer ser apropriada. Quer ser degustada e mastigada uma vez após a outra por nosso palato interior (é isso que significa ruminatio, no fim das contas). Não por meio de um processo de pensar muito, nem tentando forçar um texto a entregar os tesouros a partir da aplicação de todas as faculdades intelectuais sobre ele, mas pela receptividade representada pela repetição contínua, silenciosa ou audivelmente, da palavra que nos tocou. É dessa forma que a Palavra viaja até nossas profundezas pessoais e daí pode evocar outros textos das Escrituras de nossa memória para criar outras associações, ou experiências do nosso passado que ainda necessitem de iluminação (ainda que não tenhamos consciência disso). Ou a Palavra pode se contentar em apenas encontrar um lar dentro de nós enquanto podemos nos contentar simplesmente em ouvi-la novamente reverberar dentro de nós para nos desafiar ou nos consolar, por exemplo: ‘Os teus pecados estão perdoados’ (cf. Mc 2,5b).
Com frequência, passamos todo um tempo de lectio com a ruminação. Mas pode ser que a Palavra divina provoque uma profunda resposta em nós. Talvez, por exemplo, estamos focando-nos numa das bem aventuranças (‘Bem-aventurados os puros de coração’ [cf. Mt 5,8a]) e o desejo que tínhamos por muitos anos de ter essa bem-aventurança de repente se faz sentir e faz sair uma oração que não compusemos, mas que significa nós mesmos naquele momento: ‘Ó Deus, fazei-me puro de coração’. Tal momento é chamado de oratio. É uma oração liberada pelo Espírito Santo que perscruta nosso coração.
Algumas vezes – isso não ocorre todo dia na lectio (pelo menos não comigo), mas é sempre inesquecível quando ocorre -, há a experiência da contemplatio.Aqui a Tradição fala de uma contemplação unitiva – quer dizer, quando a Palavra que vinha sendo meditada se torna verdadeiramente um evento, realidade na vida do leitor. Imagine o que aconteceria se a promessa de Jesus – ‘Quem crer em mim, guardará minha palavra, meu Pai o amará e nós viremos a Ele e faremos nele nossa morada’ (cf. Jo 14,23d) – se tornasse experiência de fato – se o leitor, não por um esforço, nem pela imaginação, nem por pedido, mas simplesmente no decorrer da meditação dessa palavra viesse a experimentar em seu interior a habitação do Pai e do Filho, toda a vida trinitária agindo dentro dele em vez de fora dele, e tudo isso como fruto e graça de seu contato com a Palavra viva e eficaz. Isso seria a plenitude da lectio, quando o ato de leitura se torna ato puro, quando a Escritura ‘acontece’.
Porém, não devemos pensar nestes quatro momentos lectio, meditatio (ou ruminatio ), oratio, contemplatio – como um programa diário a ser percorrido. Deus sabe como deseja nos tocar com a Sua Palavra e como deseja que nós respondamos a ela. O que importa é amar a Palavra de Deus e deixar que cada vez mais ela preencha não somente os nossos tempos de lectio, mas todos os nossos momentos. Como diz o salmista: ‘Quanto eu amo, ó Senhor, a vossa lei! Permaneço o dia inteiro a meditá-la’ (cf. Sl 119,97). Agora, esse seria um bom texto para a nossa lectio divina!
Dom Bernardo Bonowitz
Abade do Mosteiro de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo Tenente (PR)