Estamos no final do cap. 6 do evangelho de João. Chega a hora do desenlace; a alternativa é clara: abrir-se à verdadeira Vida ou permanecer enredados numa vida atrofiada. Não há neutralidade; no mundo de hoje “tomam-se mais decisões por não tomá-las (que já é uma decisão) do que por tomá-las”, por acomodação, por medo de mudança, por inércia, por deixar que as coisas sigam seu curso…
Quê resultado teve a oferta de Jesus? Suas palavras entraram em choque com a mentalidade vigente; era inadmissível que uma pessoa pudesse comunicar uma mensagem tão exigente e tão libertadora. Suas palavras romperam visões distorcidas, mentalidades fechadas, modos arcaicos de viver, conservadorismo…
Também hoje corremos o risco de “adocicar” as palavras de Jesus para que não firam nossos pré-juizos. Com frequência, queremos transformar Suas Palavras de Vida em um conjunto de ritos, doutrinas, normas… para serem manipuladas segundo nossos critérios e nosso modo de viver. Mas, a Palavra de Jesus nos desestabiliza, nos desequilibra e questiona a normalidade doentia de nossa vida cotidiana. Às vezes, como os discípulos, também dizemos: “Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?”
No entanto, se queremos seguir Jesus, a única resposta possível deve ser um “sim” profundo, um “amém” decidido e generoso. Desejamos segui-lo e queremos ser como Ele; queremos abrir nossa vida à Palavra de Vida que nos sustenta e nos inspira; sentimos o forte impulso de caminhar com o Nazareno pela difícil e tortuosa estrada do povo de Deus na história.
A “palavra dura” de Jesus, no evangelho deste domingo, deve nos inspirar a uma tomada de consciência do lugar e do valor das palavras em nosso cotidiano. Quantas palavras temos dito ou escrito hoje? Temos consciência do peso, da força que elas carregam? Vivemos saturados de palavras; elas nos assaltam através das canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma conversações cotidianas. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos… E de tanto usá-las, talvez elas acabem perdendo o sentido. Começamos a considerá-las de um modo tão natural que não nos damos conta do quanto elas significam. Então falamos, mas não vivemos. Palavreado crônico, desconectado da vida.
O desenlace do cap. 6 de S. João torna-se uma ocasião privilegiada de calar, de silenciar o palavreado, de deixar de abusar das expressões gastas… para retomar a palavra sincera, para recordar que a vida não é uma brincadeira, para que, quando voltemos a pronunciar, com delicadeza, palavras carregadas de sentido e de vida, possamos nos fazer conscientes da beleza, profundidade, promessa e compromisso que está por detrás de cada uma delas. Nesse sentido, para crer em Jesus é preciso ter fome: fome de vida e de justiça, que não fica satisfeita com palavras vãs, ocas e desprovidas de sentido.
Professamos que Jesus é a Palavra de Deus, uma Palavra sem a marca da falsidade ou do vazio, uma Palavra viva e vivida; Palavra autêntica, de amor e paixão pela humanidade. Pois, através da identificação com Jesus, também nós podemos ser palavra do mesmo Deus neste mundo. Uma palavra de amor, de sustento, de presença solidária… E eu, que palavra sou?
Sabemos que a palavra é uma das realidades humanas mais profundas: elas podem embalar ou golpear, ferir ou acariciar e curar. Sinceras ou falsas, pensadas ou espontâneas… são um de nossos maiores tesouros. Dizemos, escrevemos, lemos e compartilhamos palavras carregadas de vida ou de morte. A palavra, escrita ou falada, é a expressão mais perfeita de nosso pensamento, revela-nos ao mundo exterior e é traço de união de nossos recíprocos relacionamentos.
A palavra, no dizer de um pensador, é um poderosa soberana que realiza feitos admiráveis. Pode expulsar o temor, suprimir a tristeza, infundir alegria, dilatar a compaixão. A palavra é fundamento de todo relacionamento humano. Serve para comunicar o que queremos, expressar sentimentos, argumentar, despertar… O mutismo e a negação da palavra constituem terras de desolação. Aprendemos com as palavras emprestadas de outros ou, quem sabe, também nós chegamos a dizer algo que fez a diferença para alguém.
Falamos, e na fala-escuta, nós nos encontramos e revelamos nossa identidade.
A palavra é meio divino para o encontro com todo o humano, e é sinal humano para acariciar e sonhar o divino. A palavra é lugar de encontro, de compromisso, de descanso, de ajuda, de luta, de consolo e de silêncio. Na palavra podemos chegar a ser tudo o que somos, ou podemos nos evaporar como o alento. Melhor falar com palavras que estendem pontes, encurtam distâncias e entrelaçam vidas. Melhor falar a partir do carinho, da ternura e do amor, aprendendo a reconhecer tanta bondade ao nosso entorno.
Com as palavras podemos sacudir as consciências, animar, levantar, entusiasmar, despertar desejos de arriscar-nos a viver a fundo; ou podemos desanimar, atrofiar, destruir, seduzir para fazer da vida um acontecimento trivial e sem sentido. É melhor calar aquilo que levanta muros e gera desconfiança e fraturas; é melhor calar o que envenena os sonhos e atrofia as vidas.
“As palavras que vos falei são Espírito e são vida” (Jo 6,63)
Para nós cristãos, trata-se de algo definitivo: a Palavra se fez carne. E compartilhou nossos caminhos, sentou-se em nossas mesas para revelar-se, para dar-se a conhecer, para despertar vida… Jesus foi o homem que movia com suas palavras vivas. É no encontro com a Palavra encarnada que brotam em nós palavras criativas, carregadas de esperança e de sentido. As palavras nos tocam e nos constituem.
Fora do percurso da palavra encarnada, vivemos intoxicados de palavras, ou seja, um amontoado de palavras mortas, sem carne, sem entranha, sem verdade, modelando seres adoecidos e desencarnados. A palavra tem um peso, porque sua ressonância permanece. Em tempos de “sociedade líquida”, também nossa palavra pode escorrer e evaporar-se.
Hoje, muita gente prefere Snapchat a WhatsApp ou outras redes sociais porque o conteúdo se evapora em poucos minutos. É a volatilidade das palavras que desemboca na volatilidade da comunicação e da relação. Por isso, precisamos de um novo Pentecostes, ser penetrados pelo Espírito que nos leve a nos entender, apesar de falar línguas diferentes.
É curioso: o evangelho diz com palavras muito simples e cotidianas as coisas mais profundas. Nós, com palavras complicadas e com jargões, que só os iniciados entendem, ou não dizemos nada significativo ou cobrimos o fato de não ter nada que dizer. No entanto, em nossa cotidianidade, são as simples palavras que nos ajudam a assumir os desafios da nossa existência. Não é que as outras grandes palavras sobrem. Mas é que essas palavras pequenas e simples são as que nos fazem sentir e saber-nos em caminho de Evangelho, de Reino de Deus.
Que nossas palavras sejam sempre vivas! …e a serviço da vida!
Texto bíblico: Jo 6,60-69
Na oração: As palavras, para que tenham sentido e função, para que não se tornem falsas nem dolorosas, deveriam passar pelo filtro da mente e do coração. Seguindo o conselho de S. Agostinho, as palavras deveriam antes passar pela lima que pela língua, para que cheguem à boca polidas pela inteligência e pelo amor.
– Considere sua história de vida e tente recolher delas as palavras que, espalhadas no chão de sua existência, foram criadoras de possibilidades e abertura sem limites.
– Quê palavras estão em excesso em seu falar? Quê seria melhor calar? Em quê seu falar é bem-dizer? Em quê circunstâncias da vida suas palavras são carícia, bálsamo, consolo?
Pe. Adroaldo Palaoro sj