Há perguntas que realmente não despertam nada; há perguntas maliciosas e capciosas que só buscam complicar o outro; mas há perguntas essenciais que despertam nosso “eu profundo”.
No evangelho deste domingo (31º Dom TC) nos encontramos com alguém sincero que, como outros muitos, se vê enredado em meio a tantos mandamentos e preceitos que já não sabe por onde começar a caminhar. Finalmente, alguém quer pôr as coisas em seu lugar; não quer ficar nos ramos, mas quer ir à raiz, ao verdadeiramente essencial. “Qual é o primeiro de todos os mandamentos”? Jesus também não é daqueles que soluciona os problemas vitais multiplicando mandatos, leis, preceitos. Jesus também vai as raízes da fé.
Possivelmente é a única vez que Jesus responde diretamente à pergunta, porque a considera interessante e sincera. Significativamente, Jesus não apela aos dez mandamentos, mas à atitude central da experiência religiosa judaica: “Escuta, Israel! Amarás o Senhor teu Deus…” Ele não começa pelo sexto mandamento, nem pelo nono, que são mandamentos fundamentais para a imensa maioria dos cristãos; nem sequer pelo quinto (não matar) ou pelo sétimo (não roubar).
Jesus entende muito bem o que aquele homem sente. Quando na religião vão se acumulando normas e preceitos, costumes e ritos, é fácil viver dispersos, sem saber exatamente o que é fundamental para orientar a vida de maneira sadia. Algo disto acontece muito entre nós cristãos. Jesus, diante da pergunta do escriba, atreveu-se a ir mais longe: há uma realidade em nossas vidas capaz de fazer emergir o melhor que há em todos nós, e é simplesmente o amor. E não há outra experiência de que mais necessitamos e que mais nos realiza como humanos como essa: “amar e ser amado”.
Comecemos pela experiência básica: no princípio não está o “faça isso”, nem o “amarás”, mas o “escuta”: acolha a voz de Deus! Só a partir dessa “escuta” se pode falar de amor a Deus e ao próximo. “Escuta”: este é o princípio de todo mandamento. No fundo, esta expressão quer dizer: “não te feches, não faças de tua vida um espaço enclausurado, onde só se escutam tuas vozes e as vozes de teu mundo”. Para além do que fazemos ou pensamos, daquilo que desejamos e buscamos, estende-se o amplo campo da manifestação de Deus; abrir-nos à sua voz, manter ativa a atenção à sua presença, ser receptivos frente sua Palavra…, esse é o princípio e sentido do qual brota toda vida e todo mandamento.
Cada ouvinte é um “tu” de Deus, chamado a responder-lhe com amor. Este amor que aqui se pede deve surgir como resposta: não é uma “obra” que o ser humano possa suscitar por si mesmo, mas um dinamismo pleno que brota ali onde cada ser humano acolhe a voz de Deus. Não pode responder quem não escutou; não pode amar quem não entrou no fluxo do amor de Deus, eleito por sua graça. Só porque Deus o chamou e o amou primeiro, é que o ser humano pode lhe responder.
Quando entramos em sintonia e escutamos o verdadeiro Deus, desperta-se naturalmente em nós uma atração para o amor. O “mandamento do Amor” não é propriamente uma ordem ou imposição. É o que brota em nós ao abrir-nos ao Mistério último da vida. “Amarás”. O mandamento do Amor não é lei que se impõe a partir de fora; ele “emana” (mandamento) do nosso próprio interior, pois o Amor tem como Fonte o coração do próprio Deus. Amar Aquele que é a Fonte e a origem da vida é viver amando a vida, a criação e, sobretudo, as pessoas. Jesus fala do amar “com todo o coração, com toda a alma, com todo o ser”: sem mediocridade nem cálculos interesseiros, mas de maneira generosa e confiada.
O importante não é conhecer preceitos e cumpri-los. O decisivo é nos deter a escutar o Deus que nos fala ao coração, ativando a “faísca de amor” que aí está presente. Nesta experiência, não há intermediários religiosos, não há teólogos nem moralistas. Não precisamos que alguém nos diga a partir de fora. Sabemos que o essencial é amar. E isto basta!
De fato, só merece o nome de Amor aquele que brota a partir da mais profunda liberdade e sem outra motivação que a atração desse mesmo amor. “Palavra grande, realidade maior”, dizia S. Agostinho a respeito do amor.
Nas duas tradições, judaica e cristã, o centro da pessoa é o coração. Amar é fazer tudo com o coração. Falamos do Amor Ágape que transborda, que nada pede em troca, que ama sem ter nada de particular para amar. É amor de pura gratuidade, como dom total de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, ou pela recompensa que o outra possa trazer. Com efeito, neste caso não se ama o outro porque ele é bom, mas para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado. “O amor é comunicação mútua de dons” (S. Inácio)
O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés. O Amor Ágape não é o amor que sacia nossa sede, pois ele não nasce da nossa sede, mas ele nasce da nossa fonte que corre. Não é o amor da falta, da carência, mas é o amor da plenitude.
Podemos dizer que o amor tem mãos e pés: mãos que cuidam, curam, abençoam… e pés que nos arrancam de nossos lugares rotineiros e nos deslocam para as margens, junto aos mais excluídos. Uma das maiores razões para o Amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona. Quem ama vê o tempo se alargar e a vida ganhar mais sentido. Em outras palavras, o Amor traz em si a marca da eternidade, pois se trata da “faísca de Javé” colocado por Ele no coração do ser humano, impregnando toda a sua vida.
Quando o Amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. “O amor é o que diz sim, em nós”: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão… É preciso encontrar dentro de nós este estado de “sim” ao que é. É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo que se faz visível no amor oblativo.
Quando o amor nos habita, tudo se torna sagrado; nossos olhos se tornam contemplativos, ou seja, o olhar que libera o que há de melhor em nós e nos outros. Transformamo-nos naquilo que olhamos e tornamo-nos aquilo que amamos. O amor é uma irradiação do nosso ser.
A originalidade de Jesus é a de nos revelar um amor horizontal no qual o movimento do eu em direção ao outro é reprodução e prolongamento do movimento de Deus em direção ao ser humano. Este amor a Deus é inseparável do amor ao próximo. Só se pode amar a Deus amando o próximo; do contrário, o amor a Deus é falso. Como vamos amar o Pai sem amar os seus filhos e filhas?
O texto de hoje não só reafirma o amor ao próximo, mas, ao mesmo tempo, realça sua modalidade: “ame a seu próximo como a si mesmo”. O que significa amar o próximo “como a si mesmo”? É como se dissesse: “ame seu próximo, é você mesmo”; “esse amor ao próximo é você mesmo”; “ame o seu próximo, tudo isso é você mesmo”; “ame o seu próximo, porque o seu próximo é justamente como você mesmo”.
A medida do amor de Deus é não ter medida, ou seja, experiência de abertura infinita, pois Deus ultrapassa os limites e normas da humanidade. “Como a ti mesmo”: a medida do amor ao próximo é agora a do próprio amor: amar o outro como a mim mesmo, ou seja, senti-lo como “outro eu” a meu lado, fazendo de sua vida espaço e centro de minha própria vida.
Texto bíblico: Mc. 12,28-34
Na oração:
– entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
– ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos;
– considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como presente especial e gratuito, como uma mensagem de Amor a cada um de nós.
Pe. Adroaldo Palaoro sj