Lembro-me de que, há uns anos, num encontro de narratologia, ouvi um conferencista explicar que a forma simples de sensibilizar o leitor, para o complexo jogo de referentes que uma narrativa põe em ato, era pedir-lhe que contasse, por palavras dele, um relato. Aí, o que parecia uma teoria intrincada (com o seu debate sobre pontos de vista, estatuto do narrador, trama, personagens…), tornava-se acessível de um modo muito direto. Este professor ensinava Novo Testamento numa grande universidade norte-americana, mas mantinha uma presença frequente em faculdades de países africanos. E citava o que acontecia, por exemplo, quando estudantes das duas geografias recontavam um episódio clássico do evangelho de Lucas: a parábola do filho pródigo. Na identificação do motivo pelo qual o filho pródigo se vê precipitado da confortável situação de herdeiro à aspereza de um sem-teto, os norte-americanos apontavam o facto de haver dissipado o seu capital de maneira descontrolada, enquanto que os africanos colocavam em primeiro lugar a devastadora fome que se abateu sobre a região. Tinham ambos sustentação textual, pois o evangelho cita os dois motivos. O que é curioso, porém, é compreender o significado daquilo que nos faz nem nos apercebermos de umas coisas e ver imediatamente outras.
O que é curioso é compreender o significado daquilo que nos faz nem nos apercebermos de umas coisas e ver imediatamente outras
Tenho uma história engraçada com o poeta brasileiro Eucanaã Ferraz. Encontramo-nos durante uns instantes em Lisboa, não foi mais do que isso. Eucanaã é um dos grandes criadores a escrever na nossa língua. Nesse encontro, breve, denso e comovido, a conversa levou-nos não sei como a Clarice Lispector. E ele contou-me esta história, que teria lido num dos seus livros. A escritora lamentava-se de que nunca lhe aconteciam milagres. Quando ouvia, a outras pessoas, a narração de milagres na primeira pessoa, ficava cheia de esperança, mas também de revolta, pois se perguntava: “E porque não a mim?”. Milagres nunca lhe aconteceram, a dizer a verdade, exceto um. Certo dia, caminhava pela rua, e sentiu-se escolhida por uma folha. Isso apenas: uma folha que, entre os milhões de possibilidades, veio lentamente rodopiando e bateu, ao de leve, nas suas pestanas. Naquele momento, Clarice achou que Deus possuía uma infinita e consoladora delicadeza. Semanas depois, dei por mim a procurar o volume de crônicas de Clarice em busca desse relato. Não foi difícil chegar a ele. Chama-se “O milagre das folhas”. Nesse texto, a autora conta, de facto, que nunca lhe aconteceu nenhum outro milagre, mas o das folhas se repete tanto que ela passou a considerar-se, “a escolhida das folhas”. E que, quando anda pela cidade, sabe que novas folhas virão sempre coincidir com ela. A folha que se embateu contra os seus cílios foi simplesmente mais uma. Contudo, o relato de Eucanaã não deixava de ser agudo e completamente verdadeiro em relação ao original de Clarice. E a isso, acrescentava ainda um prazer que os amigos sabem partilhar: o do reencontro. Talvez ele, de antemão, soubesse que eu iria no encalço daquele texto e que, o confronto com o que me contara, nos permitiria prosseguir, mesmo à distância, um diálogo que não podia ter lugar ali.
Um dos textos de que mais gosto do escritor Eduardo Galeano está em “O Livro dos Abraços”. É a história de um miúdo, Diego, que viaja para o sul com o pai para olhar o mar pela primeira vez. Quando chegam à praia, depois de muito caminhar, o mar está diante dos seus olhos. Era uma azul e contínua imensidão sem palavras. E o filho, colado ao pai, pediu-lhe baixinho: “— Ajuda-me a ver!” Penso que é isso que pedimos aos livros, à cultura, às histórias que ouvimos, aos amigos… e a Deus.
Dom José Tolentino Mendonça