O colapso das certezas
Vivemos num clima social dominado pela insegurança, pela instabilidade e pela provisoriedade. E isso em todos os níveis do humano: no nível pessoal e social, no nível político e eclesial, no nível econômico e cultural. As certezas sobre as quais o homem se assentava até poucas décadas atrás parecem todas em queda ou a ponto de entrar em colapso. Mas talvez o que está em queda, verdadeiramente, não são tanto esses âmbitos do humano, que se desintegraram e foram reconstruídos também em outras épocas, talvez até de um modo mais nocivo do que hoje. O que parece em colapso, hoje, é a própria tendência de se agarrar à certezas. É como se o homem de hoje acreditasse tão pouco na possibilidade de uma certeza que nem faz a tentativa, o gesto, de se apegar à certeza. É como se a humanidade de hoje fosse como um homem que caiu no meio de uma forte correnteza, e que por longo tempo tentou resistir à força das águas, agarrando-se a tudo o que era possível se agarrar, uma pedra, um galho de árvore, o mato que cresce na margem do rio. Mas parece que chegamos ao ponto em que o homem não tem mais força física e psíquica para se agarrar a algo, para fazer esse esforço, e sobretudo convenceu-se de que esse esforço é inútil, que não o salvará da correnteza do rio. Também porque para se opor à correnteza que o arrasta esse homem se agarrou a apoios cada vez mais frágeis – antes, a pedra, depois o galho, depois o mato ribeirinho – e por isso sentiu que a certeza que o sustentava se tornou objetivamente cada vez mais frágil. A força da correnteza que o arrasta, junto com a fragilidade do ponto de apoio no qual procurou salvação, enfraqueceram cada vez mais a convicção com que o homem se agarrava a qualquer coisa para se salvar. O resultado é que esse homem não tem mais outra escolha, ou crê que não tem mais outra escolha, a não ser aquela de entregar-se à correnteza, de se deixar arrastar não sabe para onde. A única realidade é a força irresistível da correnteza.
O homem flutuante
Gosto de aplicar a essa condição do homem atual a definição que São Bento, em sua Regra, atribui ao irmão que, por sua má conduta, é “excomungado” da vida comunitária e que, na sua rebelião, não se deixa ajudar (e corrigir) pela comunidade e pelo abade. Ele o denomina frater fluctuans, irmão flutuante (cf. RB 27,3). Essa palavra, em minha opinião, define bem o homem de hoje, entregue à correnteza que o arrasta, ou que flutua na superfície do mar, subindo e descendo com as ondas.
A correnteza, as ondas, são de todo tipo: são as modas, as ideologias, o poder político ou econômico, as notícias da mídia, as várias formas, em geral híbridas, de religiosidade, ou os sentimentos e as impressões do momento, ou o grande oceano que hoje está submergindo tudo: a cultura internet.Em meio a tudo isso, o homem é um objeto flutuante, um flutuador que segue e é levado pela correnteza e pela onda, que desposa o movimento da onda. A flutuação é um modo instintivo de se salvar. O homem crê que se salva “flutuando”, isto é, permanecendo na superfície. Não percebe que uma bola que boia na superfície da correnteza é também ela arrastada, segue a correnteza, segue a onda, é dominada por ela. Mas a superficialidade dá a ilusão de que se está livre da correnteza, de que escapou das suas garras, de que não vai afundar nela, e, portanto, dá a ilusão de estar livre.
O verdadeiro problema do homem contemporâneo é, talvez, justamente a superficialidade, a superficialidade como cultura, a superficialidade como política, a superficialidade como religião, a superficialidade como moral de vida. Basta olhar em volta. Com que superficialidade se vive, se fazem escolhas que deveriam ser vitais! Com que superficialidade se casa ou se divorcia, se decide ter filhos ou abortar! Com que superficialidade se vota nas eleições políticas, escolhendo sempre flutuar sobre a correnteza mais forte!Já não se pensa muito em dar voto para criar uma corrente, para afirmar a força e o bem de um ideal político. Não, vota-se na corrente que arrasta mais neste momento.
Com que superficialidade se chega até a viver a experiência que, por sua própria natureza, deveria ser a mais profunda: a religiosidade. A proliferação das seitas, das comunidades evangélicas livres, da prática religiosa “à la carte”, é viver a dimensão religiosa do coração, o que temos de mais profundo e sublime em nós, na superfície dos sentimentos, das emoções, abandonando de fato tanto a profundidade de Deus quanto a profundidade do homem. A experiência religiosa não é mais um abismo que chama um abismo, como diz o salmo 41 (cf. Sal 41,8). Não é mais o abismo do coração miserável do homem que anseia e grita pelo abismo da misericórdia de Deus.
Não quero me alongar demais nessa interpretação da situação do homem contemporâneo, que de qualquer modo é uma generalização, talvez também ela superficial. Mas me parece importante descrever um pouco melhor essa que me parece a condição mais difusa na sociedade contemporânea global, para se entender sobre qual cenário humano, cultural, religioso, queremos falar de esperança, de responsabilidade, de certeza.
Desejo de consolação
Essa descrição do homem contemporâneo não a faço com desprezo, nem como um julgamento. Até porque nesse homem contemporâneo também estou eu, estão vocês todos. E o homem contemporâneo, no curso da história, seja talvez o mais inocente quanto à sua situação, porque a correnteza sobre a qual flutua e que o arrasta atingiu-o, ao mesmo tempo, de modo tão disfarçado e violento, que era quase impossível não reagir assim, não se salvar a não ser flutuando.
Até São Bento, quando fala do “irmão flutuante”, não o faz para insultá-lo, para humilhá-lo, para condená-lo com desprezo. Ao contrário, o faz num contexto em que expressa a sua solicitude misericordiosa e o desejo de ajudar esse irmão. Fala disso num dos capítulos mais belos da Regra, em que descreve como o abade deve fazer de tudo para buscar e salvar a ovelha desgarrada, para cuidar da ovelha doente.
Leio para vocês um breve trecho desse capítulo 27 da Regra de são Bento porque é a partir daí que gostaria de continuar a aprofundar com vocês o tema da nossa esperança responsável em relação à crise globalizada do homem contemporâneo.
“O abade deve cuidar dos culpados com a máxima solicitude, porque não são os sadios que precisam de médico, mas os doentes (Mt 9,12). Por isso, deve agir como um médico sábio, enviando senpectas, isto é, irmãos anciãos e sábios (seniores sapientes fratres) que quase que inadvertidamente consolem o irmão vacilante (fratrem fluctuantem) para levá-lo a uma humilde reparação, consolando-o para que não seja acometido de excessiva tristeza, em outras palavras, como diz ainda o Apóstolo, se intensifique a caridade em relação a ele (cf. 2Cor 2,7-8) e todos rezem por ele” (RB 27,1-4).
São Bento fala da instabilidade e da superficialidade do monge culpado, doente, perdido, como objeto de uma solicitude extraordinária em relação a ele. Extraordinária porque para os irmãos que vão bem, que são fiéis, São Bento não propõe tantos cuidados, não aciona tanta riqueza de tentativas, tanta fantasia de misericórdia como para ele.
Toda essa solicitude está resumida na palavra “consolação”, que aí é utilizada duas vezes, como que para circundar o irmão flutuante, como que para sustentá-lo por todos os lados. “…enviando senpectas, isto é, irmãos anciãos e sábios que quase que inadvertidamente consolem o irmão vacilante e o levem a uma humilde reparação, consolando-o para que não seja submerso por excessiva tristeza…”.
O que quer dizer “consolar”? E como pode a consolação afetar o homem flutuante global de hoje? De qual consolação o homem contemporâneo necessita? E de onde deve vir essa consolação?Não corremos o risco, querendo consolar, de cultivar, ao invés, a superficialidade religiosa e psicológica do homem de hoje? Não arriscamos oferecer uma consolação superficial, sentimental, aquela que o homem busca agora, e crê encontrá-la justo naquilo que o impede de descer em profundidade?Não arriscamos também nós, também a Igreja, de simplesmente participar do mercado, do supermercado das consolações sentimentais que todos oferecem?
A consolação é uma companhia que te chama
Há um aspecto fundamental da consolação cristã que na passagem da Regra que acabei de citar é especialmente destacado. O fato de que a consolação é antes de tudo uma companhia, tem a forma de uma companhia pessoal. Os irmãos anciãos e sábios vão ao encontro do irmão que se acha perdido e sozinho, e lhe oferecem amizade.
Essa já é uma enorme diferença entre a consolação cristã e aquela do mundo. O mundo pretende consolar com meios, coisas, técnicas, terapias, distrações, e mil formas de doping. Não oferece uma consolação pessoal, uma companhia que olha e ouve o homem flutuante, que dialoga verdadeiramente e caminha com ele. Chegamos ao ponto, sobretudo na Europa, de oferecer como consolação a morte! Todas as associações para a eutanásia apresentam a oferta do suicídio assistido como última, total e digna consolação para o drama da vida. A corrente dominante que arrasta o homem flutuante termina, na realidade, num abismo de morte.
Mas precisamos tomar consciência de que a consolação cristã na companhia, como essa que São Bento oferece, não é, por assim dizer, açucarada, não é uma amizade que corre o risco de alimentar o sentimentalismo e a superficialidade em que o homem flutuante vive. Nessa passagem da Regra, o abade manda para consolar o irmão desorientado “irmãos anciãos e sábios”. Isso significa que se trata de monges que fizeram experiência do caminho da vida, que a partir dessa experiência, e ouvindo Deus e os anciãos sábios que os precederam, estão em condição de sussurrar ao coração e à liberdade do irmão desgarrado uma palavra que o convoque a se converter, a escolher de novo a boa via, acompanhada, guiada, oferecida pela comunidade cristã, a comunidade monástica.
Precisamente, São Bento diz que esses irmãos anciãos e pacientes, com suas discretas exortações, devem “provocá-lo a reparar com humildade – provocent ad humilitatis satisfactionem” (RB 27,3). Consolar não quer dizer desculpar tudo, dizer à pessoa que segue uma via errada que está tudo bem, que não precisa mudar. Consolar é uma “provocação”, uma palavra que provoca, no sentido etimológico do termo pro-vocare, que se poderia traduzir como: chamar a liberdade de uma pessoa a sair ou ir adiante, portanto a escolher, ao menos com o desejo, o que é melhor, o que é mais justo, o que é mais verdadeiro. A verdadeira consolação – a verdadeira companhia à solidão autônoma e nociva, em que o outro pode se encontrar, por escolha própria ou arrastado pela correnteza de um ambiente que não provoca ao bem, ao verdadeiro, ao belo – a verdadeira consolação é um apelo à liberdade do coração, um chamado, uma palavra, que faz saborear esse bem, faz desejar essa experiência boa que o outro está recusando.
Por isso São Bento fala de “provocar à reparação da humildade”. O que significa que a humildade basta para reparar os nossos erros, as nossas escolhas erradas? Também aqui não se trata só de um sentimento, mas da consciência da dimensão da nossa liberdade, do valor da posição do nosso coração. Dizer que é a humildade que repara, que satisfaz a falta de justiça da qual somos culpados, quer dizer que a liberdade do coração humano tem um imenso valor, tem um grande “poder”, ou melhor: uma grande responsabilidade. Quando o coração toma consciência do próprio mal e do próprio bem, basta que assuma a posição humilde de reconhecer que errou, a posição humilde de querer mudar, pedindo e aceitando ajuda e guia, para já se encontrar na boa estrada, para não estar mais desgarrado, flutuante, e, sim, capaz de caminhar por um caminho seguro e livre, obedecendo.
Só assim, baseando-se nessa concepção profunda e verdadeira do coração, e da sua liberdade, e da exigência que isso comporta, é que a consolação propõe uma verdadeira esperança. A esperança cristã não é tanto um esperar tempos melhores procurando abstrair-se da realidade presente. É o contrário: é estar voltado para um destino de bem que permite aderir, suportar, a realidade do presente sem querer fugir dela. A esperança cristã não é uma fuga, mas uma fé, uma certeza, um amor, que permitem viver com plenitude e alegria aquilo que humanamente gostaria de afastar, aquilo que normalmente todos querem afastar.
Consolar o mundo
Me demorei um pouco sobre essa breve passagem da Regra de São Bento porque o que São Bento expressa para a cura de uma só pessoa, de um só irmão flutuante, instável, que não sabe para onde ir, que se sente perdido, pode nos ajudar a refletir sobre a solicitude que como cristãos somos chamados a ter com o mundo, com a sociedade, com a humanidade em crise, hoje. Se a esperança é uma perseverança que não renuncia a caminhar rumo ao destino, que não foge da realidade, ainda que pesada, da estrada sobre a qual nos encontramos, como podemos viver com essa esperança e transmiti-la ao mundo como consolação? Como podemos oferecer ao mundo de hoje, à sociedade de hoje, às imensas cidades de hoje, como São Paulo, uma esperança que de fato consola? Como podemos oferecer uma esperança que não transmite ilusões ou sonhos, ou vias de fuga mais eficazes que as dos outros, mas a capacidade de viver o real com alegria, com sentido, como possibilidade de plenitude da nossa e universal humanidade?
Vimos que a consolação é, antes de tudo, uma companhia. Mas como podemos oferecer companhia a uma sociedade tão anônima, em que o fato mesmo de viver todos juntos isola cada vez mais as pessoas? É isso que me impressiona e muito me provoca quando me encontro em megalópoles como a vossa, ou como La Paz, Addis Abeba, Saigon. Cresci numa cidadezinha de 1.600 habitantes, e todo o meu país, a Suíça, conta hoje com cerca de 8,5 milhões de habitantes, cerca da metade dos habitantes de São Paulo.
Para mim, o impacto com as grandes cidades foi e continua sendo um choque. Porém, esse impacto me fez e me faz bem, me obriga a sair da minha concha, a me colocar perguntas de sentido que precisam valer para essas realidades, porque essa é a realidade da maior parte da humanidade, hoje. Não se pode entrar, mesmo que por pouco tempo, na realidade urbana das grandes metrópoles hodiernas sem ficar marcado pela extrema exigência de sentido que essas realidades representam.
E não falo só das áreas pobres dessas grandes cidades; falo da cidade em seu todo, porque inclusive as áreas ricas e protegidas, as áreas exclusivas dessas grandes cidades, gritam a necessidade de sentido, gritam a necessidade de consolação, tanto mais grave quanto mais inconsciente.
Os pobres dificilmente podem escapar da sua realidade. Ao passo que os ricos, geralmente, vivem numa realidade que ela própria é uma ilusão, ela própria escapa do verdadeiro sentido da vida. Vivem numa realidade que foge da realidade: nada de mais desumano! Como se pode evitar a fuga se a pessoa já é prisioneira dela?E como viver a esperança se a pessoa se ilude de que não precisa esperar nada?
Mas Cristo quer alcançar e consolar também essa pessoa que a riqueza e o poder – talvez o poder político, ou econômico, ou também eclesiástico – a mantém fechada. O jovem rico que parte triste, sem ter abraçado o sentido da sua vida, sem ter acolhido a alegria e a plenitude da sua vida, será que Jesus não o quer consolar? O jovem rico é como o irmão excomungado que São Bento faz de tudo para alcançar, para reencontrar, para ajudar a voltar para o encontro com Cristo e para o caminho de uma vida nova, vida plena que Jesus lhe propõe ao pedir que o siga, que largue tudo para segui-lo.
Jesus olhou o jovem rico com amor quando este lhe perguntou o que precisava fazer para ter a vida eterna (cf. Mc 10,21). Vocês acham que esse amor se apagou no coração de Jesus quando o jovem o recusou e partiu com o rosto e o coração tristes? Imaginem se o amor de Cristo pode se apagar, ou mesmo só diminuir! Deus é amor, e se em Deus, em Jesus, diminuísse o amor, seria como se Deus diminuísse em seu Ser, fosse menos Ele próprio. Impossível!
Mas o amor de Jesus pelo jovem rico, enquanto este se afastava, certamente tornou-se compaixão, e, portanto, desejo de consolação. A compaixão é a consolação de quem sofre, de quem padece, é companhia para quem está na provação e na dor, ainda que seja uma dor culpada, como a tristeza do jovem rico que se recusa a abandonar as suas riquezas, ou o choro de Pedro quando renegou Jesus.
Oferecer uma companhia no mundo e para o mundo
Mas mesmo a compaixão, como a consolação, só é verdadeira se for companhia, se for oferta de relação, de comunhão.Caso contrário, serão apenas sentimentos, emoções, que passam como todas as emoções que,por exemplo, as notícias trágicas da mídia suscitam em nós.
A verdadeira questão, portanto, é se se oferece ou não companhia ao mundo que sofre, ao mundo desorientado.
Como se oferece uma companhia ao mundo? O método de Cristo para oferecer companhia ao mundo não é outro senão a Igreja como experiência de companhia. Para oferecer companhia ao mundo, Cristo oferece uma companhia no mundo. Jesus coloca no mundo uma companhia, uma comunidade, uma comunhão vivida, experimentada, absolutamente original, que Ele faz coincidir com Ele próprio, com o seu Corpo, com o seu permanecer conosco.Deus não envia imediatamente os seus discípulos para fazer companhia ao mundo pagão, ao mundo desorientado e flutuante. Pede aos seus discípulos que vivam entre si, e criem com as pessoas que encontrem, uma vida nova de comunhão, de fraternidade, à qual Jesus garante a substância, isto é, a Sua presença, a Eucaristia.
É assim que Cristo oferece companhia ao mundo, oferece acompanhamento, oferece consolação, oferece compaixão, oferece correção, ao mundo de dois mil anos atrás,bem como ao mundo de São Bento, ou de São Francisco, ou de Santo Inácio de Loyola, do Santo Cura d´Ars, e também ao mundo de hoje. A companhia de Cristo ao mundo é a companhia de Cristo no mundo. Para consolar a humanidade flutuante e desorientada – inclusive a humanidade hostil a Deus e ao desígnio de Deus sobre o homem – Cristo suscita no mundo a Sua companhia, a Igreja, as comunidades cristãs, seja de duas ou três pessoas, não importa, porque Ele assegurou: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20).
Acho que esse é um ponto muito importante, que corremos o risco de esquecer, ou de entender mal. Sobre esse ponto, que é uma consciência da natureza do evento cristão, baseia-se toda a verdade e fecundidade da nossa vida de fé. E não entender esse ponto leva muitos cristãos a ter uma relação errada tanto com a Igreja quanto com o mundo, e assim ter uma relação errada com todas as expressões missionárias, culturais, sociais, políticas, etc., que somos chamados a viver.
Sobretudo, não entender esse ponto, não entender a modalidade escolhida por Jesus para tornar verdadeira e fecunda a presença dos Seus discípulos no mundo torna justamente estéril e às vezes até enganadora a presença dos cristãos no mundo. Todos corremos o risco, inclusive a partir de uma real generosidade, de querer intervir para socorrer o mundo em crise global sem passar através de Cristo. Corremos todos o risco de nos inspirar em Jesus, no seu Evangelho, mas de não passar verdadeiramente através dEle, de não passar através dEle para socorrer o mundo, para salvar o homem contemporâneo flutuante, náufrago. Achamos que socorremos melhor e mais rapidamente lançando-nos no mar e ir nadando até o náufrago que se agita no meio das ondas, em vez de perder tempo subindo no barco de Pedro e remar junto com os outros discípulos, e alcançar com essa companhia o náufrago para lhe oferecer a ajuda do barco e encontrar neste uma companhia de salvação querida, criada e mandada por Cristo Salvador.
Reconhecer a necessidade de ser salvo
Sem dúvida, a companhia que Cristo suscita no mundo, a Igreja, tem um defeito de fábrica irreparável: não é constituída antes de tudo pelas nossas capacidades, mas pela fraqueza radical de homens e mulheres que não podem salvar a si próprios, que não podem salvar-se sem Cristo. A necessidade de salvação é uma fraqueza radical, mas é, talvez, a única necessidade humana absolutamente autêntica, não falsa, totalmente verdadeira. Eu nunca estou certo de que tenho realmente fome ou sede, e também a minha necessidade de ser amado, sei por experiência que muitas vezes é contaminada pelo egoísmo e pela pretensão. Mas a necessidade de salvação, de salvação do meu mal, do meu pecado, do meu não saber dar sentido à minha vida, essa eu sei que é sempre verdadeira, ainda que nem sempre eu capte em mim essa sede profunda de redenção, ainda que geralmente eu esqueça de mendigar salvação a Cristo.
Quando, porém, encontrei a Igreja, descobri uma companhia na qual Cristo responde a esse grito do coração, e só isso permite uma fidelidade à companhia mais forte do que as suas fragilidades e incoerências, a começar pelas minhas.
A companhia suscitada por Cristo é assim, antes de tudo,uma companhia de consciência e experiência de que somos salvos por Ele, e só por Ele. Só essa experiência habilita a companhia cristã a consolar o mundo, o mundo inteiro, porque a salvação que experimentamos é uma salvação universal. Até uma pequena comunidade de duas ou três pessoas que fazem experiência da salvação em Cristo está habilitada a consolar o mundo inteiro, porque a missão da Igreja não é operar a salvação, mas acolhê-la e transmiti-la. Uma pequena comunidade consciente do mistério de Cristo, consciente da Sua presença gratuita e ardente de amor por toda a humanidade, isto é, uma comunidade que vive a memória do mistério pascal, e a celebra, ou seja, uma pequena comunidade que vive verdadeiramente a Eucaristia, consola o mundo infinitamente mais e melhor do que um exército de valorosos que pretendem salvar o mundo com suas próprias ideias e energias. Uma pequena comunidade de monjas anciãs, que, humanamente falando, está no fim, morrendo, consola mais o mundo do que uma grande comunidade florescente que pensa que é preciosa e fecunda pelo que faz e expressa, e por como faz e expressa o que faz.
Uma nova missão
Entendemos, então, que frente à crise global de tudo, inclusive da Igreja, a única esperança para nós e para todos é acolher o mandado de Cristo, o seu mandamento novo, que Ele revelou durante a última Ceia, antes de deixar os Seus discípulos: “Eu vos dou um mandamento novo que ameis uns aos outros. Como eu vos amei, assim amai-vos uns aos outros. Por isso todos saberão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,34-35).
A palavra “mandamento”, mais do que uma ordem a ser executada, nos evoca a ideia de uma missão a cumprir, a cumprir junto com Aquele que nos envia. A missão que Cristo deixa aos Seus discípulos nada mais é que o Seu próprio amor, de viver entre eles o amor que Ele viveu com eles.
A comunidade cristã é essencialmente isso: uma lareira onde continua a arder a chama do amor de Cristo. E ardendo na comunidade, o fogo se propaga para todos: “todos saberão que sois meus discípulos”. Não significa que todos verão em nós a etiqueta “discípulo de Cristo”, como todos os espectadores veem o que um jogador brasileiro tinha escrito na própria camiseta: “I belong to Jesus”.
O mundo deve ver que somos discípulos ao ver o amor entre nós, ao ver a comunhão entre nós, a experiência de comunhão que há entre nós. Não é como ver uma etiqueta, mas como ver um fogo. Uma etiqueta não compartilha nada, não transmite nada. O fogo, ao invés, cada um pode se aproximar para receber luz, calor, e até para receber o próprio fogo, para ser também acendido por ele.
Por isso, quando nos encontramos diante da crise global do mundo, quando topamos com a crise da Igreja, que é com frequência, como diz o Papa, uma crise de “mundanidade”, isto é, um entrar da crise do mundo na Igreja, a pergunta mais justa e prioritária que deveríamos nos colocar não é tanto “O que precisamos fazer?”, mas “Que comunhão em Cristo somos chamados a viver, a intensificar, com quem está próximo de mim, para oferecer ao mundo, a este mundo em crise, a esta crise do mundo, a companhia através da qual Cristo possa consolá-lo, corrigi-lo, salvá-lo?”.
A esperança é crer que essa pobre e frágil companhia de pessoas pobres e frágeis é a resposta à crise global do mundo e da história. A crise do mundo deve nos despertar para o valor da companhia cristã, que é um valor gratuito, doado inteiramente por Deus aos homens. A crise global deve nos despertar para a responsabilidade de viver entre nós algo que pode consolar o mundo inteiro.
Enquanto a catedral Notre-Dame de Paris estava pegando fogo, duas semanas atrás, todo o mundo foi tomado por profunda tristeza, e por um sentimento de impotência: só se podia olhar e sofrer com aquele espetáculo. Era como para Maria e as outras mulheres diante da cruz, diante da agonia de Jesus na cruz, sem poder fazer nada mais que sofrer em silêncio. Mas vimos que grupos de pessoas, diante daquele espetáculo, espontaneamente se reuniram, no meio da rua, para rezar juntos, para fazer comunidade frente àquela destruição aparentemente sem esperança.
Essa imagem era muito simbólica do que realmente aconteceu, e que nenhuma imagem televisiva pode mostrar: isto é, que a esperança, até para o mundo que está queimando, também para a Igreja, que às vezes parece destruída por um mal oculto e devastador como o fogo, a esperança permanece viva na comunhão das pessoas em Cristo, a esperança se salva na comunidade cristã reunida na oração, reunida na mendicância de salvação, e é assim que a esperança é cada vez mais forte do que qualquer destruição, do que qualquer catástrofe, inclusive da morte.
Semear comunhão no mundo
A história da Igreja começou e sempre recomeçou a partir de sementes de comunidade que encarnaram a presença de Cristo, mandado pelo Pai no dom do Espírito Santo. Não há carisma na Igreja que não tenha como raiz a comunhão fraterna e que não deu fruto a não ser a partir de uma comunhão aberta a abraçar todos.
O início é sempre uma semente, na qual tudo já está presente e doado. Uma semente é como a encarnação da esperança, é a esperança que entra no tempo e o fecunda. E ao mesmo tempo é a esperança que lança a semente. Não há semeadura sem uma esperança. A semeadura atua, realiza, encarna a esperança para o mundo inteiro. Só a esperança permite lançar a semente da palavra de Deus, a semente da caridade, a semente do acolhimento, enfim a semente da comunidade, da Igreja, com a consciência de que desse pequeno gesto depende a salvação do mundo.
Hoje, talvez, Jesus mudaria um pouco a palavra que disse um dia, sentindo compaixão pelas multidões “perdidas sem pastor” (Mt 9,36), isto é, pela crise de sentido e de acompanhamento da humanidade. Disse: “A messe é abundante, mas são poucos os operários! Rezai, pois, ao senhor da messe para que mande operários para a sua messe!” (Mt 9,37-38).
Talvez hoje Jesus não diria que a messe é grande, mas que o deserto é imenso, e nos faria pedir ao Pai que mande semeadores para o deserto do mundo para lançar a semente da companhia cristã que encarna a consolação que liberta o coração do homem e o restitui à comunhão humana e divina, para a qual foi criado pela Trindade.
Na imagem da minha ordenação presbiteral eu coloquei uma frase da Lumen Gentiumque sempre mantenho presente, porque expressa a missão e a esperança da Igreja no mundo e para o mundo, que é essencialmente a missão e a esperança de que a semente da comunhão trinitária – que experimenta e anuncia – dê fruto envolvendo o mundo inteiro:
“Assim a Igreja une prece e trabalho [como nos mosteiros de são Bento: Ora et labora], a fim de que o mundo inteiro em todo o seu ser seja transformado em povo de Deus, corpo místico de Cristo e templo do Espírito Santo, e em Cristo, centro de todas as coisas, se torne toda honra e glória ao Criador e Pai do universo” (Lumen Gentium, 17).
A obra da esperança cristã está toda nessa missão!
D. Mauro-Giuseppe Lepori,
Abade Geral da Ordem Cisterciense (O.Cist)