Nas pegadas dos pobres e marginalizados, prossegue a caravana de Jesus em direção a Jericó. Detém-se, porém, ao grito do cego. Constata-se, uma vez mais, que o Mestre nunca atropela quem sofre. Jamais ignora o clamor que, de todas as partes da terra, se ergue ao céu. Da mesma forma que a fome e a solidão, a dor não pode esperar. Constituem três irmãs siamesas que merecem atenção imediata. A misericórdia do Senhor, ao “percorrer as cidades e os povoados”, fixa o olhar sobre as “multidões cansadas e abatidas, que vagavam como ovelhas que não tem pastor” (Mt 9, 35-38).
Entretanto, a cegueira não é total. Talvez aquele Homem de Nazaré, de quem tanto o povo diz e desdiz, possa fazer algo. De repente, justamente Ele que se aproxima. Bartimeu sente o rumor de muitos pés e, dando-se conta do que está ocorrendo, chama: “Jesus, filho de David, tem piedade de mim”! E contra aqueles que o querem fazer calar e o ameaçam, “grita ainda mais forte ainda”. Por trás daqueles olhos cerrados, esconde-se uma esperança viva e vital. A cegueira, ao mesmo tempo, oculta e revela o olhar do coração, o olhar da fé! Daí, uma vez mais, a conclusão do Mestre: “Vai, a tua fé te salvou; súbito recuperou a vista e pôs-se a segui-lo pela estrada” (Mc 10, 46-52).
Basta um voo rasante ao redor de todo globo, ou ao longo do país em particular, para constatar as mais diversas formas de cegueira. Ou miopia, que às vezes se torna ainda mais grave. Não ver, ver pela metade ou fazer de conta que não se vê – eis os diversos graus da indiferença que hoje em dia paralisa pessoas e grupos, autoridades, entidades e partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, organizações de base, igrejas e tantas outros atores sociais… Indiferença que, simultaneamente, reflete a causa e o efeito do comodismo, da apatia, do individualismo ou da “paz do cemitério”. A verdadeira paz, como assinala com frequência a Doutrina Social da Igreja, é fruto não apenas da técnica, do progresso e do crescimento econômico, mas sobretudo do desenvolvimento integral, justo e igualitário.
Ao contrário do Bartimeu a que se refere o Evangelho, porém, grande parte desta cegueira ou miopia que nos caracteriza, parcial ou definitivamente, perdeu o encanto, o entusiasmo, o sonho e a esperança. Vale dizer, deixou de cultivar o olhar do coração ou da alma. Deixou de perceber que, nas entrelinhas que entrelaçam o tecido da história, existe algo superior às que as forças sociais, econômicas, políticas ou culturais. Numa palavra, no interior mesmo dos fatos e das relações que costuramos, existe algo mais que a força humana. Algo ou Alguém – não acima, nem abaixo ou fora, mas para além de nossa peregrinação sobre a face da Terra – energiza e ilumina as sombras e as trevas que atualmente cobrem os projetos políticos de muitas nações, bem como da economia globalizada. Trata-se de uma luz que, em meio à crise, nos faz avançar para a encruzilhada. E esta, por sua vez, pressupõe duas coisas: alternativas diversas e uma escolha. Em tais escolhas, as digitais do sobrenatural estão impressas no pergaminho da história.
Qual o problema então? Nossa cegueira ou miopia, diferentemente do protagonista evangélico, encontra-se desprovida do olhar da fé. “Jesus, filho de David, tem piedade de mim!”, repete Bartimeu. Neste momento, tropeçamos não raro com a máscara da autossuficiência. Em lugar de orientar nosso olhar cerrado ao olhar aberto e compassivo do Senhor, seguimos teimosamente nossos projetos socio-históricos, como se toda e qualquer mudança dependesse de nossas mãos. As forças do mal são poderosos e se agigantam. Depois, há vícios e medos, há dúvidas e temores, há debilidades e fraquezas, há tensões e contradições… tudo a ser enfrentado, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista sociopolítico. Sós, órfãos, perdidos e abandonados, seremos capazes de superar os entraves que nos fazem atolar no brejo?!…
Talvez a humildade de Bartimeu possa servir-nos de orientação e de farol num momento tão crítico e decisivo da história brasileira. Não para chegar a um porto final, mas a um porto seguro. A partir deste, o “grande sertão” de nossos pensamentos, relações e projetos, poderá identificar novas “veredas” a serem redescobertas, para usar a metáfora magistral do poeta Guimarães Rosa. Disso resulta que o olhar cego ou míope, quando guiado pelo olhar da fé, dá-se conta da presença do Mestre, descortinando n’Ele a luz e a força, o vigor e a coragem para prosseguir na dura travessia. Quem sabe o belo edifício chamado Brasil, construído com tantos e tão variados tijolos, esteja necessitando do cimento dessa esperança. Vale concluir, de resto, que ela consiste em um dos ingredientes privilegiados da cultura popular.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, padre carlista
Publicado por: Instituto Humanitas – Unisinos