Nessa quinta-feira, a Igreja Católica celebra a festa do Corpo e Sangue de Cristo. Em muitas paróquias se fazem reflexões sobre a Eucaristia. Algumas dioceses substituem a antiga procissão por uma concentração com celebração eucarística. No entanto, qual é a situação atual da celebração da Ceia de Jesus nas Igrejas cristãs?
Desde a antiguidade, a eucaristia teve diversos nomes e passou por diversas compreensões: a partilha do pão foi o primeiro nome encontrado em textos do Novo Testamento. Esse nome indica o significado mais profundo e primeiro da Ceia: partilhar. Fazer um sinal de que ao partilhar o mesmo pão e vinho, queremos partilhar a vida. E nessa partilha, reconhecemos Jesus Ressuscitado que parte e reparte o pão para nós e é o provocador da nossa mudança de vida e do fato de que queremos partilhar a vida, do jeito que for possível e o mais que nós pudermos.
Os primeiros pais da Igreja, como Inácio de Antioquia e Irineu de Lyon a inculturaram ao mundo grego e a chamaram de eucaristia, ação de graças. Aí já há uma passagem interpretativa. Parece que ao gesto da partilha se sobrepôs a dimensão cultual que antes existia na própria partilha. “Ele tomou o pão, pronunciou a bênção (isso é, em hebraico, disse que Deus está de acordo) ou “deu graças” (em grego) e repartiu”. Agora a celebração vai tomando um aspecto mais cultual. Mais tarde, foi incorporada a noção de sacrifício e a partir do século IV passou a se chamar de Missa.
Na Idade Média, o debate da hierarquia católica contra Berengário (século XI) sobre a transubstanciação ou transignificação é o que está por trás da festa do Corpus Christi que nasceu em algumas dioceses no século XII e foi oficializada no século XIII para toda a Igreja. Aí o importante era sublinhar a presença real de Jesus na hóstia.
Hoje, muitas Igrejas cristãs buscam a unidade, mas a eucaristia, que é o sacramento da unidade é ainda um obstáculo para essa unidade. Embora algumas defendam a hospitalidade eucarística, a maioria acredita que a participação na eucaristia supõe a unidade visível já realizada e enquanto não se chegar a isso, ainda não se celebra juntos e nem se comunga da mesma ceia.
O pastor Paolo Ricca fala de um verdadeiro apartheid eucarístico nas Igrejas, seja por discriminarem outros crentes julgados indignos de comungar, seja porque, na própria forma de praticar a ceia, as Igrejas parecem ter se afastado do que Jesus viveu (a ceia na qual acolhia sempre os pecadores) e aos discípulos na última ceia deu o supremo sinal do seu amor: dar a vida. Hoje a eucaristia parece mais um ato de poder do que de amor. Muitas regras litúrgicas sobre quem pode fazer isso e quem não pode, muitas restrições para a comunhão, muitas obrigações de rubricas a cumprir e textos a serem seguidos… O que significa isso para a maioria da humanidade de hoje? Será que esse rigorismo litúrgico fala bem de Jesus e apresenta ao mundo hoje uma imagem de Deus amor? Nem falar da própria noção de sacrifício ainda hoje presente nos textos e na cabeça de muitos ministros e sem o devido aprofundamento bíblico e patrístico de como se entendia que a missa era sacrifício (Como dizia Agostinho no século IV, o memorial do sacrifício da cruz, o sacrifício que pôs fim definitivo a todos os sacrifícios do mundo).
Ao reler o capítulo 13 do evangelho de João e ver a cena do lava-pés, podemos pensar que no final do século I, quando a comunidade joanina escreveu esse relato, as Igrejas locais já tinham transformado a ceia de Jesus em culto religioso e até sacrificial. E a comunidade joanina escreveu o relato do lava-pés como uma espécie de anti-texto, de provocação quase como se parecesse anti-eucarística, para lembrar às comunidades que o núcleo da ceia é esse: lavar os pés uns dos outros e doar a vida, como fez Jesus despojado de suas vestes ao lavar os pés dos discípulos e ao ser pregado na cruz.
Ó Deus de amor, olha a mim, teu pobre servo que ama tanto celebrar e olha as tuas Igrejas espalhadas pelo mundo. Dá a mim e a todos os cristãos a graça de nunca celebrar a ceia de Jesus de forma qualquer, quase rotineiramente (como diria Bonhoeffer – como graça barata – Não, a graça custa caro. Custou a vida de Jesus). Dá-nos a graça de que eu, nós todos, as Igrejas todas, nos convertamos ao espírito mais profundo da ceia de Jesus – o serviço uns dos outros, a doação da vida como pobre e crucificado pelo mundo – e não como ato de poder jurídico ou sacramental sem ligação com a realidade. Ensina-nos a dar de Deus a imagem de um Amor infinito que só pode amar e não de um Senhor todo-poderoso, sedento de sangue e de sacrifícios para salvar o mundo. Dá nos a graça de fazer de toda a nossa vida uma vida eucarística, isso é, de ação de graças, de partilha e de doação aos outros.
Marcello Barros, monge beneditino