«O renascimento da fotografia»: é o que anuncia enfaticamente a recente publicidade de uma conhecida marca de telemóveis ao apresentar a última joia da empresa: um “smartphone” com tripla câmara posterior, potenciada por inteligência artificial. Antes vendiam-se telemóveis capazes de tirar fotografias. Hoje vendem-se máquinas fotográficas que telefonam. É um sinal dos tempos, emblemático de uma sociedade em que o culto das imagens tomou o controle, fruto da segunda revolução digital, caracterizada pela supremacia da internet e das redes sociais. A aldeia global vive numa “iconosfera”. Facebook, Google, Twitter, Instagram, Snapchat são os novos mediadores da realidade e transformaram-nos em “voyeur”, em pessoas que observam a vida dos outros, mas das quais acabamos, contra a nossa vontade, por nos sentirmos coprotagonistas.
O consumo exasperado de “smartphones”, com uma obsolescência – inclusivamente programada – que se mede em poucos meses e que gera uma corrida frenética ao último modelo, sempre com mais capacidades, modificou o nosso modo de estar e de nos relacionarmos com o mundo. O excesso de imagens gerado por este vórtice alimentado pela rede está a fazer com que as próprias imagens tenham mudado de natureza. Tudo isto abre para reflexões inéditas sobre a essência e o papel da fotografia, mas coloca também novos desafios que são tudo menos simples de enfrentar. Reflexões e desafios que são o objeto do livro “La furia de las imagenes: Notas sobre la postfotografia” (“A fúria das imagens. Notas sobre a pós-fotografia”, 2016, ed. Galaxia Gutenberg, 272 páginas), do fotógrafo, crítico, professor e curador espanhol Joan Fontcuberta (n. 1955), que procura dar um sentido a esta asfixiante massificação iconográfica, mas também fornecer os critérios para gerir o seu fluxo inestancável.
Fontcuberta desloca a atenção para as formas como as imagens nos atingem e afetam, sublinhando a perspetiva sociológica e antropológica. E parte de uma pergunta: «Temos de nos perguntar se esta crescente miríade de fotografias não constitui na realidade uma espécie de metástases». Um cancro que deflagrou provavelmente com a primeira objetiva incorporada num telemóvel, mas que teve origem no primeiro sensor digital numa máquina fotográfica, suplantando a velha película e abrindo assim caminho à revolução e, consequentemente, à era da pós-fotografia. O “homo photographicus”, a espécie para a qual evoluímos, segundo a definição do investigação, vive agora num mundo em que «pela primeira vez somos produtores e consumidores de imagens». Imagens que deixaram de ser uma mediação com o mundo mas a sua matéria-prima, apesar de serem cada vez mais evasivas e, portanto, difíceis de controlar.
A pós-fotografia, para Fontcuberta, «refere-se à fotografia que flui no espaço híbrido da sociedade digital e que é consequência da superabundância visual». Não estamos na presença da invenção de um procedimento, mas da demolição de uma cultura, ou do «desmantelamento das modalidades visuais que a fotografia impôs hegemonicamente durante um século e meio». E para exprimir melhor o conceito, o estudioso faz a comparação com outra passagem que ao tempo foi revolucionária. «A fotografia só provocou na pintura uma mudança de rota, mas não a suprimiu do mapa; todo o contrário do que aconteceu entre a pós-fotografia e a fotografia, porque esta última parece ter sido engolida». Pelo menos como a conhecemos até agora.
O advento do digital colocou também o problema da manipulação das fotografias, que trouxe consigo uma ceticismo generalizado sobre a veracidade das imagens, e portanto uma rescisão do contrato social com a fotografia que até agora era aceite, baseado na confiança, na noção de rasto fotográfico. É verdade que antes havia manipulação na câmara escura, mas hoje as possibilidades são praticamente infinitas.
Na era da pós-fotografia, escreve Fontcuberta, o mundo transformou-se num espaço dominado pelo instantâneo, pela globalização e pela desmaterialização da autoria no momento em que as noções de originalidade e propriedade estão a desaparecer. Hoje é fácil apropriar-se da imagem de outro. O mote parece ser: partilhar é melhor que possuir.
Mas vivemos também num mundo caracterizado por uma «modernidade acelerada e intensificada, na qual a urgência e a quantidade tornam-se qualidade». O investigador propõe, a propósito, o exemplo de um dos principais jornais de Hong Kong. Em 2010 despediu os seus oito fotógrafos locais e forneceu máquinas digitais a um grupo de estafetas que entregavam pizzas ao domicílio. Motivo? Chegam primeiro. Na substância, passou a ideia de que vale mais uma imagem incerta obtida por um amador no momento decisivo do que uma foto perfeita mas inexistente como notícia porque tardia. «Deste recente exemplo de darwinismo tecnológico depreende-se uma mudança de cânone no fotojornalismo: a velocidade prevalece no instante decisivo, a rapidez sobre o apuro», escreve o autor.
Fotografar é para todos uma nova forma natural de relação com os outros. Neste contexto o fenómeno das “selfies” constitui um sintoma significativo, que «declara a supremacia do narcisismo sobre o reconhecimento do outro». «Estas fotografias não são recordações a conservar mas mensagens a enviar e trocar» e «continuam a alimentar a necessidade psicológica de acrescer a afirmação de si», defende. As conclusões não são tranquilizadoras. Como considera o crítico de arte José Luis Brea, citado por Fontecuberta, «em grande parte as imagens eletrónicas possuem a qualidade das imagens mentais. Aparecem em lugares dos quais desaparecem imediatamente a seguir. São espetros, puros espetros, alheias a todo o princípio da realidade». Não existem, desaparecem, ninguém as recorda. Vivem o tempo de uma visualização, de um fugaz “like”. Por isso hoje as imagens ícone, essas que se imprimem na memória coletiva, são cada vez mais raras.
Em que consiste, então, o valor de uma fotografia num contexto em que todos são fotógrafos? Para o autor, «na capacidade de dotar a imagem de um objetivo e de um sentido, fazendo com que seja significativa», ou útil para determinado uso. Por conseguinte, «a autoria – o carácter artístico – deixa de ter as suas raízes no ato físico da produção, mas no ato mental de regular os valores que podem conter ou acomodar as imagens: que estão subentendidos ou que lhes são conferidos». Para os fotógrafos “verdadeiros”, o desafio é conseguir encontrar novas rotas, não fáceis, mas capazes de as fazer emergir deste oceano que engole tudo. E nesse sentido é muitas vezes útil um olhar externo, capaz de oferecer outra perspetiva e de construir um discurso onde há substância mas num aparente vazio de programa. Há outro filão interessante para a fotografia artística: o da exploração da internet (e dos arquivos) para uma operação de “re-mediação”. É o caso, por exemplo, das obras de fotógrafos que na realidade não fotografam mas criam com as imagens de outros.
A massificação das imagens desnorteou as regras com que nos relacionávamos com elas. O risco é que os efeitos de tal massificação nos fujam da mão. «Num momento em que as imagens constituem o espaço social do ser humano, não podemos permitir-nos que fiquem fora de controlo, não podemos permitir que as imagens se tornem furiosas e reajam contra nós», aponta Fontcuberta. Como que a dizer: perdemos a soberania sobre as imagens, temos de a recuperar. Uma visão talvez demasiado apocalíptica, certamente provocatória, sobre a qual, no entanto, é bom refletir. Mais não seja que para nos reeducar a olhar.
Gaetano Vallini
In L’Osservatore Romano
Trad.: SNPC
Imagem: REDPIXEL.PL/Bigstock.com
Publicado em 18.04.2018